domingo, 17 de fevereiro de 2008

O BAILADO HUMANO

O BAILADO HUMANO de Carlos Kahê

O escritor itabunense, Carlos Kahê, lançou no último inverno, no Rio de Janeiro, o seu belíssimo livro de contos, O BAILADO HUMANO, pela Editora 7Letras. As datas para as noites de autógrafos, por ordem de cidade, seguiram a seguinte seqüência, Rio (Argumento, Leblon), Itabuna (Foyeur do Starplex Cinema) Vitória da Conquista (Arena e Nobel), Salvador (Academia de Letras da Bahia), Sete Lagoas (MG) (Casa dos Drummonds) e Itagimirim, no extremo-sul baiano, terra do escritor.
O BAILADO HUMANO é um belo livro de contos escritos com alma, por um autor que preza o idioma. A sua mensagem subjetiva, poética é encantadora. Kahê é sublime, ao escrever – na minha opinião, o melhor trabalho publicado, no âmbito literário, nos últimos anos. Mestre que ensina e que aprende, que inova e se renova, Kahê burila a eloqüência posta em seus livros para brindar-nos com inúmeras imagens e leveza nas palavras. Embora não escreva em versos, é poeta porque vive a poesia; é um escritor que não se deixa levar pela ansiedade, e vê o que a nós humanos comuns passa despercebido. É essencialmente contador de histórias, às quais sobrepõe lirismo e imaginação fértil.
A pedra e o nada – conto que abre o livro – é um grito de alerta para as doenças degenerativas que assolam o nosso tempo, e nesse grito, está inserido o apelo de inclusão sociológica de alguém que pode estar ao seu lado, caro leitor. A insígnia (Alma&Zai) evoca, em seus entrelaçamentos, o mal de Alzheimer. O autor expõe o intrínseco, ao incursionar pelo psicológico, e revela, nessa sua viagem, que o ódio e o rancor têm raízes profundas, tanto quanto o amor e a paixão. Se mal cuidados, podem nos levar a fechar os olhos para o que de interessante o mundo nos oferece. Ao transpor a linha visível, leva-nos a conhecer a imagem latente que doma a psique da personagem; imagem essa simbolizada pelas luzes da efeméride, esmaecendo, inexoravelmente, como um conta-gotas indicando a porta de saída da vida. Em, A dor propriamente, um pai tenta livrar o filho de um processo criminal, ao empunhar a arma usada por este, em ato frio, criminoso. Ao assumir a culpa, ele deixa que lavem o seu entardecer – pois estava na casa dos oitenta anos – com uma enxurrada de deturpações e julgamentos precipitados. Kahê discorre sobre fatos, enfeitando-os com suas metáforas, e o leitor passa então a entender que se trata apenas de um colóquio literário. Sem nomear personagens ou situações, ele transforma um caso de polícia, em ato de amor; e o pai – um simples homem dominado pelo desespero e pela vulnerabilidade – num rio ressequido, um lago onde a dor propriamente habitava. Em, O Homem do terno-azul, ele homenageia o homem simples de sua cidade; ressalta valores, símbolos e manifestações folclóricas, contudo, sem trazer a lume a biografia de alguém em especial. Faz repercutir, através da vida do seu personagem, a história do homem trabalhador que sacrifica a vida em benefício dos filhos, sem conseguir jamais merecer o devido respeito, ou o mínimo reconhecimento. No caso de Jesuíno, as filhas sempre se envergonharam do seu ofício. “Jesuíno mergulhava o corpo entre os pontos negros das pedras do Cachoeira, para colher do mundo turvo de suas águas o Natal, o remédio e o peixe da Semana-Santa...” Desse ofício de pescador bissexto e de vendedor ambulante, ele lhes deu uma vida digna. Quando entenderam que o pai não podia mais empurrar o seu carroção de lanches na porta dos seus consultórios, as filhas o desprezaram num “abrigo para velhos”, esmagado, como um verme, um fragmento cego. Jesuíno jamais imaginou viver assim. O amor humano e frágil a que tanto devotara, definhava-o nas dobras do esquecimento. Vestia o terno-azul, e punha-se sentado à entrada do asilo, onde morreu solitário, aguardando “suas meninas” o visitarem. O passageiro da chuva. Um garoto de dez anos, numa tarde-noite de tempestade, passa a refletir as condições de sua família, vivendo numa casa antiga, terrificados, vulneráveis, a mercê de temporais. O autor repassa ainda o mistério ocorrido naquela noite, da visita de um compadre, durante tempestade. Como explicar fatos que acontecem na vida de pessoas superiores, capazes de ouvir sinais de acontecimentos longínquos? Como justificar a despedida de um amor compadre, tão romântica, acompanhada pelos ouvidos de criança tão cheia de curiosidade? Em Sentimento do mundo: um ser feito de poesia, o autor usa a beleza dos versos de inumeráveis poetas, para montar e desmontar histórias de relacionamentos, costurando-as à base de poesias. Nesta costura, ensina-nos a atravessar a rua, a viajar e descer a duas quadras do seu mistério. Ensina como nos apartar de nossas comodidades e viver a alegria das crianças presente em nós. Uma ótima oportunidade para estudantes de Letras dissecarem os poemas propostos. Não faz muito tempo, falou-se que a cidade de São Paulo não tem natureza literária. Assim, não pensam os poetas baianos, Caetano Veloso e Carlos Kahê. O inferno-verde-paulistano aqui apresentado como uma crônica é uma ode a São Paulo, um poema longo, que nos deixa estarrecido com a imaginação que só ocorre a um grande artista: – ”Isolados pela marca indelével de suas diferenças, na altura do parque dom pedro com a consolação, o solimões e o negro confluem para a paulista e ali transcorrem, serenos, silenciando apitos, buzinas, ronco de motores e faróis....” Descrito em linguagem subjetiva, que impressiona e encanta, o poema foi escrito em letras minúsculas, para desarvorar a sintaxe e afinar os verbetes num tom menor de força, dentro de cada verso; discorre sobre o asfalto levando o rio majestoso, fundindo-o com a cidade majestosa, num final brilhante, deixando o leitor ofegante, com vontade de ler outra vez mais. O estranho amante do Grajaú, um espírito sensual atrai uma prostituta das ruas do Rio para a sua mansão, tencionando cumprir um rito matrimonial não celebrado em sua passagem pela terra. ‘O homem cheirava a cravo-de-defunto, não porque escondesse atrás de si um ramalhete tufado com gérbera, que ele mesmo cuidava, mas, pelo hálito sepulcral que despejava, ao falar do trato que dava às ervas e aos florais”. Em O astro, o autor, astuciosamente, tenta seduzir os jovens para as leituras, pois entende que toda forma de arte e convívio requerem aprofundamento e, de forma simbólica, usa a vida de um grande astro “imaginado” Solano Triste, para refletir sobre o sucesso efêmero e a vida ilusória de muitos artistas: “Envelhecem, trocando o cesto da colheita, pelo pesado fardo das lembranças... Após terem gasto sua mocidade e vigor, são no fim da vida fustigados pela negação à velhice; muitas vezes, na pobreza, esquecidos, relegados às vigílias trabalhosas de sempre terem que ressaltar o seu passado. Não raro, a grande recompensa, chega somente após a morte”. Em, A lua-de-mel, o autor conta a história de Kike e Ana Luísa, um jovem casal que, em plenos anos da transformação de costumes e quebras de parâmetros sociais, defendem os reais preceitos morais da família; e, em defesa de sua própria honra, a jovem-esposa, não deixa o marido possuí-la em sua lua-de-mel.O príncipe é o mais humano dos contos registrados em o BAILADO HUMANO. “No final da tarde, o príncipe retornava à casa, de trem, observando o casario triste à margem da linha, e os meninos tristes riscando linhas à margem da vida... Pensava nos filhos e enchia os olhos e o coração de tristeza”. É uma história verídica que brinda o leitor com a vida de Abdias, um homem que pintava de poesia os seus sonhos impossíveis, e delas se utilizava para tornar o mundo melhor. Abdias foi um príncipe que, com resignação e paciência, aceitou os reveses da vida; as gotas que tenha chorado jamais fluiram de um mar salgado de revolta. Escolheu viver apaixonado e morreu afogado num grande lago doce. Um lago brotado das entranhas de sua natureza. Um lago, comumente, chamado de amor. Ao tocar a mão de Bandeira, dissoluto: estrela de uma vida inteira sentimos brotar uma imensa saudade da Líbia ardente, Siria fria, Europa, França e Bahia... Distraídos, esquecemos anos, dias e o canto maior das cotovias... Antes de fechar o livro, Kahê homenageia aquele que considera, entre os poetas, o maior de todos e incita o seu leitor a aprofundar-se no cerne textual do grande poeta pernambucano. Nós, porém ao encerrarmos a nossa leitura ficamos convencidos de ter-nos aproximado da alma de Kahê, e do seu firme propósito de desvendar o homem, amparando-o, dentro da sua existência, através da leveza de suas palavras.
Helvécio Meira
Editor e revisor literário