quinta-feira, 24 de julho de 2008

O ESTADO É UM BOM RIO

O ESTADO É UM BOM RIO
Oran e sua família passaram toda a sua vida à margem de um rio. O bom rio os ajudava de muitos modos. Na primavera, crescia com marés imensas extraídas dos derretimentos da neve sobre uma centena de montanhas, onde localizava sua fonte. O rio corria tão largo, tão fundo e tão vermelho aos seus pés, que Oran era incapaz de perceber a imensa rede estendida sob as estacas onde se sentara. A rede vivia repleta de peixes. Como a força do rio é impressionante sob a água turva? Nas manhãs nevoentas, a própria margem do outro lado era impossível vê-la absolutamente. Oran nem imaginava que se sentava à beira de um oceano lamacento. Seu pai não era pescador, era lavrador, mas tirava daquele rio o que se tornara impossível na sua labuta. Sob o olhar de Oran, passavam barcos desde os botezinhos de pescar nos juncos, aos veleiros com olhos pintados a olharem para ele, de suas proas. Uma vez ou outra apareciam embarcações baixas, estrangeiras, a lhe oferecer emprego em escolas ao custo de um voto. Oran, que não sabia o que era Escola, odiava esses barcos. O rio também os odiava: inchava sempre em coléricas ondas; balançava-se para trás e para diante, quando eles passavam; às vezes, as ondas elevavam-se tão altas que os pequenos barcos de pesca quase viravam. Quando isso acontecia, os pescadores lançavam pragas em voz alta contra aqueles navios estrangeiros.
As cheias eram terríveis para a família de Oran. Quando elas vinham, eles mal conseguiam dormir, pois a água murmurava pertinho de suas camas. A princípio, ele pensou que a água não pudesse chegar mais perto, até vir uma enchente maior e trazer o pavor nos olhos de seus pais. A desgraça chegara a suas vidas e eles tinham que rumar para uma enseada mais calma. No novo lugar, sem trabalho, acabou-se a comida, e tampouco os barcos do antigo porto passavam mais com seus olhos pintados. Barco nenhum passara naqueles dias. Parecia outra vida. A família de Oran se sentia como única remanescente sobre a terra. Certo dia passou por ali um feiticeiro e lhes ofereceu um livro. A família de Oran quis saber:
– O que fazemos com ele? Se come? Ao que o feiticeiro respondeu:
– Leia-o! - Oran e sua família jamais viram um livro de perto.
– A senhora já leu, mãe? O que encontrou aí dentro?
– Na verdade nunca li. Quando tive eu tempo para tal coisa?... Tinha de trabalhar! Só as pessoas ociosas vão à escola... Gentes da cidade! É verdade que meu pai falava em mandar o meu irmão mais velho, por causa da aparência das coisas... Meu pai era um homem orgulhoso, a ponto de achar que na família deveria ter alguém que soubesse ler e escrever. Meu irmão chegou a passar lá uns três dias, mas cansou-se de ficar tanto tempo sentado: chorou, amuou e fez tanta pendenga que seu avô desistiu da idéia. Oran ficou pensativo e quis saber:
– As moças da cidade lêem livros?
– Ouvi dizer que é a nova moda. Mas que utilidade poderá ter para uma moça é que não sei. Tem sempre de fazer as mesmas coisas: cozinhar, costurar, fiar, estender a rede e, quando se casa, faz as mesmas coisas de novo e dá também seus filhos à luz. Os livros não podem auxiliar uma mulher...
Chegou o tempo de o rio baixar, mas não baixou. Continuava alimentado por um secreto e inexaurível oceano. Oran começou a sonhar com os barcos do antigo porto, e todo dia sentava-se em frente ao rio a esperar pelas carrancas que lhe vinham amedrontar com seus olhos pintados...
Passados alguns dias, eis que surge no horizonte um barco imenso, as hastes blindadas, ostentando uma estrela solitária. Oran ficou a observá-lo sem dizer nada. Gostaria de dizer: “Salve a minha família que tem fome!” No entanto, tinha tanta vergonha de falar, que se emudeceu à passagem do barco. Vendo-os tristes e sem saída, a tripulação abaixou a âncora e os fez subir. Eram os alquimistas. Oran já ouvira o vento dizer: “os alquimistas estão chegando. Eles são discretos e silenciosos...”.
Os alquimistas os levaram para a cidade e os empregaram nas escolas, nas unidades controladas pelo Estado. O pai de Oran, humildemente, perguntou:
– O que vamos fazer nas escolas?... Não sabemos ler nem escrever! O comandante esteve a ponto de esbravejar, resmungou com impaciência:
– Votar!... Sabem o que é isso? Depois das eleições será outra história. Ora, depois de votar vocês retornam à vidinha besta de seu rio!
Oran e sua família jamais iriam imaginar que aquele barco os estava levando a conhecer dias fartos. Se soubessem como avaliar os seus dias, não deixariam livro algum dizer que o seu Rio estava em estado de putrefação; que a patriótica corrupção dos tripulantes nada tinha a ver com a escola da imoralidade, nem que eles dispõem do bem público para fazer e acontecer; que a vida privada de seus agentes não se acabou, nem bateu recorde algum de lamentáveis vergonhas. É mentira que o Rio deixa que pobres se empobreçam cada vez mais; que o Estado industrializa esmolas em trocas de votos. A descompostura, a desonra, a rapinagem e a iniqüidade da corrupção, explicada com singela esperteza eleitoral jamais fora contabilizada como contumácia... A família de Oran, comendo desses frutos, jamais iria admitir tanta injúria contra um Rio tão bom...
Carlos Kahê