segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A mulher do tenente francês

A mulher do tenente francês
A mulher do tenente francês é um dos mais cultuados romances de John Fowles (1926–2005). A história se passa na Inglaterra, em 1867. Charles Smithson é um nobre inglês, noivo de Ernestina, filha de um comerciante. A diferença de berços é significativa: enquanto Charles é um cavalheiro, sua noiva faz parte da burguesia emergente, classe cada vez mais poderosa financeiramente, mas que ainda era ridicularizada pela fidalguia. Para Charles, é um casamento oportuno, embora a mistura de classes não seja o melhor dos mundos: aos olhos de quem possui a nobreza no sangue, unir-se à classe trabalhadora, aos novos ricos cuja educação será sempre um arremedo da fidalguia é um inegável sinal de declínio. Nas palavras do narrador, em Londres, em meados do século, já começara uma estratificação plutocrática da sociedade. Naturalmente, nada podia substituir uma boa linhagem, mas, em geral, já se admitia que o dinheiro e a inteligência eram capazes de produzir artificialmente um sucedâneo bem razoável da posição social aceitável.
Esse momento histórico é descrito com muitos detalhes. O narrador atenta para as vestimentas das boas moças, bem como para as diferenças entre a moda londrina e a provinciana; divaga sobre os valores conservadores que fazem dos personagens vitorianos o que são; comenta as origens dos movimentos pela igualdade de direitos da mulher, e lembra o leitor mais distraído que, no momento histórico descrito, O capital de Karl Marx estava para ser publicado, enquanto A origem das espécies, de Charles Darwin, mudava lentamente o modo de pensar daqueles intelectuais.
John Fowles escreveu o que muitos chamariam de romance histórico. Embora não haja aqui nenhum grande acontecimento histórico que possamos chamar de paradigmático (como a queda de Napoleão em A Cartuxa de Parma, ou a Revolução Francesa em O conto de duas cidades), há um recorte histórico preciso, de um momento de transformação social determinante na vida íntima dos personagens, e do qual estes, por sua vez, se tornam representativos.
O passado, em A mulher do tenente francês, é visto com distanciamento: o narrador comenta insistentemente as diferenças entre o tempo da narração (1967) e o tempo narrado (1867), debatendo as idiossincrasias da época vitoriana, sem poupar comentários irônicos. “Bem, a gente ri”, afirma o narrador; afinal, “nada é mais incompreensível para nós que esse comportamento metódico dos vitorianos”.
O trato irônico com a matéria histórica é um dos fatores que renderam a John Fowles a alcunha de romancista pós-moderno. Teóricos como Linda Hutcheon vêem no comportamento de seu narrador um exemplo bastante representativo de como a ficção histórica contemporânea (a chamada “metaficção historiográfica”, para usar uma expressão cara à autora) não revisita a História com nostalgia, mas com ironia e senso crítico. Não vale a pena dissertarmos aqui sobre os imperativos do que se convencionou chamar de narrativa pós-moderna, até porque o próprio conceito de pós-modernidade está, ainda, bastante aberto ao debate. Mas seria impossível comentarmos A mulher do tenente francês sem nos referirmos a alguns dos procedimentos literários normalmente associados à ficção dita pós-moderna. Dentre eles, a obsessão pelas referências intertextuais e pela metalinguagem.
O intertextos são muitos: estão nas epígrafes, todas retiradas de obras clássicas do século 19 (poemas, tratados científicos, romances) e no corpo do texto, em referências mais ou menos veladas a cenários e heroínas da época, saídas dos livros de Jane Austen. São referências que ajudam não apenas na reconstituição histórica, como também na elaboração de um modelo literário e de pensamento com o qual o romance dialoga criticamente.
Já o narrador de John Fowles, além de ironizar o passado histórico que descreve, debate sem pudor as opções dos personagens, suas inseguranças, mesquinharias e caprichos. E não hesita em, por exemplo, condenar um personagem particularmente odioso ao fogo dos infernos. Além disso, o narrador também comenta suas próprias opções estilísticas, desde o uso supostamente exagerado de pontos de exclamação até certos comentários paralelos à ação, a serviço da “cultura inútil” do leitor.
Alguns dos momentos mais célebres do romance são, precisamente, aqueles em que o narrador discorre mais detidamente sobre a literatura. Por exemplo, quando disserta sobre os motivos que levam os romancistas a criarem suas histórias:
Só há um motivo compartilhado por todos nós: Desejamos criar mundos reais como aquele em que vivemos, mas diferentes. Por isso não podemos fazer planos. Sabemos que o mundo é um organismo, não uma máquina. Também sabemos que um mundo genuinamente criado deve ser independente de seu criador; um mundo planejado (um mundo que revele totalmente seu planejamento) é um mundo morto. Nossos personagens e nossa trama só adquirem vida quando começam a nos desobedecer. [...] A questão é que, além de ele [Charles] ter começado a ganhar independência, eu devo respeitá-la e renunciar aos planos quase divinos que concebi para ele, se quiser que ele seja real [...]. O romancista ainda é um deus, uma vez que cria (e nem mesmo o mais aleatório romance moderno de vanguarda conseguiu eliminar totalmente o autor). O que mudou é que já não somos mais os deuses da imagem vitoriana, oniscientes e prepotentes, mas sim os de um a nova imagem teológica, em que nosso primeiro princípio é a liberdade, não a autoridade.
Um narrador onipotente?
É esse princípio da liberdade um dos temas mais importantes do romance. Apesar do casamento iminente, Charles se vê atraído pela estranha figura de Sarah Woodruff, uma empregada conhecida como “a mulher do tenente francês”. Isso porque, de acordo com a população local, ela teria tido um caso amoroso com um oficial francês que a teria abandonado. Esse passado a qualifica como uma prostituta aos olhos do puritanismo vitoriano (e algumas das observações mais divertidas por parte do narrador dizem respeito à vida sexual vitoriana). De modo que Sarah é quase uma pária local. E a atração de Charles por essa misteriosa moça parece ser proporcional a sua aversão ao mundo burguês ao qual está fadado.
A metáfora mais importante do romance talvez seja a da evolução das espécies de Darwin. O homem vitoriano, a exemplo de qualquer outra espécie, precisa se adaptar para não sucumbir aos imperativos da evolução. Ou seja: Charles precisa se adaptar para sobreviver, o que significa abraçar o trabalho e sua nova vida burguesa. Mas o narrador insiste no contrário. Que os personagens são independentes, e não estão totalmente sujeitos aos imperativos de sua época. E que, de certa forma, o personagem é tão mais forte quanto mais resiste à adaptação, buscando seu próprio caminho. É uma idéia compartilhada por muitos autores contemporâneos, a de que o personagem tem liberdade de ação, e não está submetido aos caprichos do autor. Funciona como metáfora para a idéia de que a obra literária está sempre em aberto, e a história permanece incompleta, a ser concluída pelo leitor. Ou como recusa ao determinismo realista do 19.
John Fowles aproxima-se do modelo do romance vitoriano para negá-lo, ao final. Não sem antes lhe reservar um último golpe: o final em aberto. Não que o romance termine inconcluso; mas possui dois finais possíveis. Na verdade três, incluindo outro desfecho alternativo insinuado pelo narrador mais de 50 páginas antes do fim. E, para comentar essa estrutura inusitada, o narrador toma uma atitude igualmente insólita: torna-se ele próprio um personagem, adentrando a história e observando os eventos a uma certa distância. É claro que o apenas o leitor mais apressado confundiria o narrador e sua persona com o autor do livro, John Fowles. Não podemos sequer garantir que pensem da mesma forma.
Portanto, é o narrador personificado na narrativa, e não John Fowles, que conclui sua tese ao final do romance, e que pode ser resumida em uma de suas últimas epígrafes: “A evolução é simplesmente o processo pelo qual o acaso (...) colabora com a lei natural para criar formas vivas melhores e mais aptas à sobrevivência”. Fica-nos a impressão de que estivemos lendo um romance de tese, e que o narrador submeteu personagens determinados por sua época a uma experiência ― ao modo do romance naturalista ― para ao final afirmar a independência desses seres. E o papel do acaso na adaptação das espécies literárias.
Mas esse não é um romance realista, e as conclusões não são tão óbvias. O leitor mais atento pode-se perguntar, por exemplo: a maneira como o narrador adentra o romance e manipula deliberadamente seu encerramento, não termina por ser mais uma declaração de onipotência divina do que uma atitude de sujeição aos desígnios do acaso? Ou seja: embora negue ser um Deus onisciente, não termina por sê-lo, agindo como um titeriteiro, que manipula suas criaturas em favor de uma tese literária?
A questão fica em aberto. Como em todos os grandes romances.
Referência:
FOWLES, John. A mulher do tenente francês. Trad. Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

Um comentário:

a_rosa disse...

Estou escrevendo um ensaio so "The Enigma" do John Fowles. Sua postagem me foi muito útil. Obrigada :)