segunda-feira, 6 de julho de 2009

DOSTOIÉVSKI: A VIDA DE UM GRANDE PECADOR

Não sou daqueles que acreditam em mazelas da vida como fator que propõe a esse ou aquele ser humano o viés essencial à construção de uma carreira literária. Brutalidades, traumas e tragédias podem marcar o perfil de uma escrita, todavia não é essencial, pois que sensibilidade, entendimento do mundo, dom, o escritor de verdade já traz consigo. DOSTOIEVSKI era um escritor de verdade, e não era obrigado a concordar comigo. Nem eu com ele. Bem, ele creditava à sua escrita os traumas pessoais que ele mesmo chamava de afrontas, e uma dessas afrontas, conta seu biógrafo, Joseph Frank, aconteceu debaixo da janela de sua casa: o mensageiro do correio, após uns bons tragos de vodka retorna à carruagem estacionada e despeja sobre o cocheiro, que o aguardava, toda a sua brutalidade: punhos incessantes na nuca do camponês, na mesma constância em que este chicoteava, freneticamente, os cavalos, àquela altura, atabalhoados, marchando desordenadamente.
Acontece, porém, que quando lhe ocorreu tal cena, Dostoievski não era uma criança, mas um jovem aspirante, estudante da Escola de Engenharia de São Petersburgo, portanto já grandinho para colocar entre as mazelas de sua vida esse quadro de brutalidade.
A cantora Maysa, como pudemos ver através de sua história, em recente especial da Globo, punha em suas composições suas torturas de amor, a vivência diária de seus desencontros; facilidades tais que com ela nascera para compor um estilo; jamais uma soma de resultados provenientes de uma outra soma de equívocos. Ela tinha, além da bela voz, o talento para compor, e gostava (ou se sentia bem) reunindo em suas letras tudo aquilo que para o homem comum são verdadeiros traumas.
Voltando a Dostoievski, a crítica mundial confere à saúde precária do autor, sua situação financeira calamitosa, bem como as desavenças e desafios ao pai (seus famosos traumas), elementos que o elevaram à condição de maior especialista na alma humana. Há controvérsias, e estas se perfilam desde o gênero de sua escrita aos temas pesados abordados em sua obra. Neste aspecto, Marguerite Yourcenar me dá uma melhor definição de completude. Eu, particularmente, quero fugir sempre aos caldeirões existenciais, e ratifico este pensamento na própria obra desse escritor, cuja melhor colheita aconteceu quando ele viveu sua estabilidade conjugal.
Mikhail Bakhtin afirmou, com particular veemência, que as personagens de Dostoievski, “não vivem uma vida biográfica”, isto é, não nascem, passam a infância e a juventude e casam-se, geram filhos, envelhecem e morrem, pois o autor só concentra a ação nos pontos de crises, fraturas e catástrofes. Quando escrevia O Idiota, o autor chegou a dizer a um amigo que no tema abordado pelo livro ele encontrava deleite e inquietação: o título do romance já anunciava o conceito desejado como forma de compor o personagem: um indivíduo puro, superior, que acaba sendo para os demais, numa sociedade corrompida, um idiota – um inadaptado. Sabe-se que, ao criar o príncipe Míchkin, personagem de O Idiota, a obsessão de Dostoievski repousava em Cristo e em Dom Quixote. A própria ênfase no poema de Puchkin, “O cavaleiro pobre”, decorre da sua relação com Quixote. Ao levar a história para o cinema, o diretor russo, Ivan Píriev, transpôs para a tela a primeira parte da história, cuja figura do ator principal, Iúri Iácovlev era um ser hibrido, ora Jesus, ora Dom Quixote. Quando, ao recriar o mundo atormentado de Dostoiesvski, em meio à enevoada São Petersburgo, o diretor o fez com maestria a cena em que o príncipe acaricia o assassino de sua amada, ele (tra)vestira o príncipe com a indumentária de Cristo. Para o contexto dostoievsquiano, este é um paroxismo difícil de aceitar. Uma situação-limite, extrema. Em seus apontamentos, Dostoievski escreveu que os leitores souberam aceitar aquele final, mas a crítica, no entanto, refutou. Decorridos tantos anos, após tantas e tantas resenhas e teses acerca do romance, aquele desfecho continua, para alguns críticos, como Boris Schneiderman, desconcertante, abissal, “um verdadeiro desafio à nossa capacidade de aceitar as ações de uma personagem literária”.
Quando escreveu outra de suas obras famosas, Os irmãos Karamazov, a primeira que eu li de seu grande acervo, ainda nos meus tempos de alamedas floridas de Ipanema, Dostoievski estava em paz com a crítica e consigo mesmo. Este livro foi bem recebido, devido ao seu conteúdo febril, em que imprevistos e enigmas do destino dão pouca folga ao homem em geral. Nessa época, quando o autor, além do reconhecimento, passou a obter algum refresco financeiro, foi justamente quando ele se encaminhava para a morte: o romance foi publicado em 1879 e ele faleceu em 1881.
A vastidão do romance fez com que gerações de leitores entendessem que, naquele ponto, Dostoievski chegava ao Olimpo literário. Nesse livro, acredito, ele disse tudo quanto podia, e seus diálogos se sucediam em avalanches de confissões e paradoxais desabafos. Quem o lê guardará na lembrança seu caudal tortuoso, intranqüilo, depois de alguns dias e noites debruçado sobre suas 750 páginas, mas quererá ir sempre em frente, puxado por fragmentos feéricos e dramáticos que compõem o vitral de que ele é apenas um dos elementos. Explicando: Dostoievski impunha aos leitores a sua visão particular de mundo – céus e infernos; Deus e seu reverso, e para isso atribui aos seus personagens as falas de que queria dispor. Estilhaços que, junto a ele pareciam angelicais; anjos abrindo-se em revelações, contudo, deixando a ele o final que planejara.
Em Os Irmãos Karamazov os filhos, notadamente Dmitri, foram criados sob implacável negligência paterna, cuja paternidade fora representada por Grigori, criado fiel e pai afetivo dos meninos.
Em sua história pessoal, o pai de Dostoievski, aposentado após a morte da mãe, retira-se para uma pequena propriedade rural; de lá manda os filhos homens para boas escolas, sustentando seus gastos pessoais e estudos. Veio a ruína, porém Dostoievski continuou sugando os minguados recursos do pai, e este, sempre, acalentando no filho uma ilusão de poder. Vendo o pai assassinado pelos camponeses, seus empregados, por falta de pagamento, Dostoievski, enfim, toma ciência da sua situação, e se culpa pela tragédia. Eis o nexo de causa e efeito. Aqui ele começa a montar o mosaico em sua cabeça: explorando o pai, ele obrigara-o a explorar seus empregados... Enfim, inicio do estopim.
Para entender que Dostoievski creditava aos seus sofrimentos a saga de sua literatura, eis o conselho do próprio escritor a um colega iniciante: “Para escrever bem é preciso sofrer, sofrer”. Prefiro sua definição acerca do homem: “um ser que se habitua a tudo”.
Dostoievski insuflou ao gênero prosaico a poesia das paixões intelectuais; a poesia das discussões ideológicas, a poesia das análises psicológicas, iniciando-se, assim, uma época literária, universal, que caminha.
A carga emocional apoiada na estrutura espiritualista de Fiódor Dostoievski levaram-no a revigorar manuscritos, a esboços de um romance intitulado “A vida de um grande pecador”, um projeto que, como dizem, passaria a régua em sua trajetória de escritor. Como sabemos, o livro não foi levado a cabo, mas a idéia foi apanhada por Puchkin, que escreveu o poema longo, “O cavaleiro pobre”. A vida de um grande pecador, não há como não nos levar a uma autobiografia. Certo, ele optou pela biografia da família em Irmãos Karamazov, como ato involuntário de justiça. Assim, enquanto o mundo que ele profetizou não se realizar, o pecador e o santo continuam indissociáveis.
Carlos Kahê

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