segunda-feira, 6 de julho de 2009

KAFKA E AS METAMORFOSES



Não fosse o seu gênio literato, quem poderia ter sido Franz Kafka?
Naquela Praga pertencente ao Império Austro-Húngaro, subordinada a Viena, presa à dinastia dos Habsburgos, ainda não existia a Tchecoslováquia, cujo nascimento, via Estado democrático, se daria somente em 1918.
E não era só: a casta a que pertencia – industriais, banqueiros e altos funcionários – falava alemão, a língua dominante, enquanto que a massa de operários falava tcheco. Ou seja, mais do que dividir dois povos distintos, a língua criava diferenças e discriminações dentro de um mesmo país, e eu me pergunto: isto era fome para o organismo de um jejuador, ou uma onda gigantesca para a cabeça de um artista?
Kafka estudou Direito e trabalhou numa seguradora italiana. Escolheu trabalhar longe da atividade literária e se negava a ganhar dinheiro escrevendo sob encomenda, alegando precisar manter sua arte pura: observando os operários humildes, acidentados, em busca do amparo do governo é que formulava a questão do conformismo da massa ante a onipotência de um Estado que esmagava.
Não teve na vida política, sequer uma posição clara que o alçasse aos diálogos e construções de ensaios na cena cultural de Praga. Jamais chegou a formular idéias propriamente socialistas e suas incursões públicas são muito tênues para serem pregadas em sua trajetória.
Kafka viveu desencantado com as próprias revoluções, não lhes punha fé; entendia que política era para quem entendia de política. Para quem dela dependesse. Em sua obra, no entanto, está registrado seu profundo incômodo com a estrutura social complexa representada pela apatia dos que se deixavam dominar (os bons oprimidos) sempre em condições inferiores à energia da engenharia dominante (os maus opressores).
Kafka não teve vida para acompanhar o assassinato de suas irmãs pelo holocausto; teve sensibilidade para se condoer com o comodismo individualista de uma sociedade interesseira, omissa, que fechou os olhos para uma realidade desenvolvida à sombra do Nazismo.
Não teve uma formação religiosa, profunda: nascido de uma família judia, não fervorosa, aproximou-se um pouco dos judeus germanizados que viviam em Praga; até interessou-se pelo sionismo, apenas por curiosidade, instigado pela última companheira, Dora Diamant.
Como a historia haveria de contar, o fervor de Dora foi insuficiente para torná-lo um homem em quem os rabinos depositariam aquele orgulho cretino próprios dos religiosos. O amor, tampouco lhe matou a fome. Namorou várias mulheres, noivou-se de algumas, trocou uma pela outra em plenos anos X do século passado; mas eram relações tratadas com o misto de esperança e de medo. Vivendo esses amores frios, anti-sentimentais; apenas um foi razoável e já nos tempos da madureza, que foi seu relacionamento com Dora, uma jovem de 18 anos.
É fato que, na casa de suas agonias, o racionalismo intelectual acabou vencendo o amor, assim como o seu eterno ceticismo em relação a Deus.
Se é verdade que escritores gostam da solidão, Kafka tinha fome de solidão e espalhou este sentimento pela vida e pela criação. Demonstrava fragilidade, incerteza, recusa em ser forte como fora o seu pai, Hermann Kafka (dito na carta que lhe fizera e não entregou) recusou em ser forte como era o Estado que o dominava, como o mundo que o amedrontava e que ele tão bem descreveu em sua literatura. Nas características de seus personagens, Kafka punha incompreensão política, deslocamento social e desapego pessoal e material... Em relação às coisas, não tinham passado nem futuro, história ou expectativa. Daí a naturalização do absurdo.
A rigor, a situação kafkiana de impotência do individuo moderno se vê as voltas com um inesperado poder que passa a controlar a sua vida; que o leva à alienação ou a um padrão de iniciativas inúteis.
Kafkiano é um atributo internacional concedido a Kafka: o termo está inclusive nos dicionários. Há, no entanto, hipertrofias que tratam mal esse atributo: fazem mau uso dele, ao transferir para o termo tudo aquilo que nos parece estranho, absurdo e impenetrável. Em Kafka, o homem comum se aproxima do empecilho banal da aceitação a tudo. O esforço de encontrar a lei está condenando-o ao fracasso, e cada vez mais distanciando-o do alvo elevado: uma parábola que descortina o apelo revolucionário de sua narrativa.
Kafka morreu aos 41 anos, tuberculoso, considerando tudo o quanto escrevera bobagens que deviam ser queimadas. Max Brod, seu grande amigo, não o atendeu; conhecia sua personalidade hesitante e o legado que o amigo deixaria ao mundo. Em seu último livro, "A construção", ele já sabia de sua doença, tanto quanto do que cometera escrevendo.
Pessoalmente, não acredito em rigor asséptico, quando tratamos de ego e de construção psicológica. Kafka sabia, sim, do seu valor. A construção de toda a sua obra nos emite este sinal de lucidez diante da fatalidade; chega a até a exibir uma espécie de testamento, pela total inconformidade com tudo e com todos.
Um artista consagrado, no alto da sua capacidade, tem condições de transferir para a sua última obra toda a sua essência. Kafka teve um lúgubre, não digamos presságio, uma vez que ele estava no sanatório lutando contra a tuberculose; porém tinha consciência plena de que o fim estava próximo. Decerto não poderia se dar ao luxo do “branco total da criação”, pois o tempo “rugia”; e nem poderia conclamar o poder de síntese. Mesmo na tentativa de consagrar e até superar tudo quanto, até então criara, Kafka fez seu último trabalho superestimando seu mais alto grau de sobriedade e de resignação. Esta resignação era dedicada àquele que nada entendeu do que ele havia escrito. Ele sabia a grandeza da sua criação, porém a modéstia imperou até no momento em que as suas forças o empurravam para clamar as asas da liberdade diante do fim eminente. Se o narrador punha em alta o sentimento de felicidade, o poder dominante do escritor o retraía com idéias de fracasso. No seu caso, para o seu domínio, grandioso seria muito pouco.
Para resumir a ópera, Kafka desejava nos impor em seu último trabalho um fragmento inacabado, nos propõe, até, um pressentimento incomprovado de que as coisas podem sinalizar a ausência de uma finalidade contida na própria meta traçada. Em A construção, fez entoar no seu distorcido canto do cisne um grito solitário que ninguém esteve disposto a atender. Esquecê-lo, quem havia de? Há superação, há consolo e há beleza; é como não houvesse fim, pois o narrador simboliza a insegurança de quem se encerra sem saber se é o caso.
Para finalizar, a metamorfose percebida na obra de Kafka testemunha um momento na história da literatura na qual já não se podia lançar mão sem escrúpulos de estratégias de representações ilusórias já desgastadas. Criando a poética da metamorfose e da parábola, o cômico e o trágico se unem e se desconstroem para derrubar o pano que escondia a face do temor e do cisma, do seu próprio fazer literário, deixando uma indisfarçável fissura sobre si mesmo, e que jamais parou de crescer.
Não vou colocar aqui que Franz Kafka é a minha grande referência literária. Como não o foi Dostoievski ou Machado ou Saramago. Gosto da emoção, gosto de ver o pendão florido. Kafka chamou-me a atenção após constatar que os maiores escritores do planeta, aqueles que me inspiraram a escrever, tinham-no como modelo. São exemplos: Borges, Cortazar, Garcia Márquez, Vargas Llosa e Carlos Fuentes. Diziam estes que a palavra estruturada marcada por conflitos insolúveis, aparentemente frias, tinham o tempo exato e o ritmo inconfundível a colocar frente a frente o espanto do eu com o mundo. Dos ícones acima citados, percebo, no entanto, que apenas Cortazar o seguiu como um discípulo fiel.

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