MEMÓRIAS DE LÁZARO
De acordo com alguns críticos, esta é uma história que poderia ser um documentário acerca da passagem do ser humano pela terra: nascimento, sofrimento e ressurreição.
A história, narrada por Alexandre, seu personagem central, flui de sua memória, enaltecendo a mata – admiração de sua infância –, condicionando essa memória fotográfica a uma metáfora, uma ilusão que se configura dentro da narrativa: uma visão única de mundo. Eis o nascimento.
O sofrimento vem marcado, ao denunciar, estarrecido, as maldades, sem fim, das pessoas que habitavam o vale: mas estas serão analisadas sempre em desvantagem de significado humano, em relação aos cavalos selvagens. A ressurreição, apresenta-se na ação de sair do lugar, o que acena como prenuncio de libertação daquele povo ali enterrado, mesmo antes da morte física.
Esta era a realidade possível, de Alexandre, demarcada pelo autor, cuja obra inicia o modelo literário do viés sinistro, macabro, que ainda tomaria lugar mais acentuado na literatura.
A narrativa desenvolve-se em dois planos distintos que caminham, paralelamente, ao longo de sua história, até a morte de Alexandre. No plano 1 o autor se encarrega dos fatos tidos como presentes, demonstrados pelas pequenas introduções aos capítulos ou partes: é um plano breve, de nuances, dentro do tempo histórico, porém suficiente para que Alexandre, ao sair da casa de Natanael, após o nascimento da criança deformada, seja vitimado por um ataque de demência; ela mergulha em um ataque agônico e ferido, o que o faz com que le não mais reconheça a estrada do vale, tão familiar.
Doente, ele espera pela morte, narrando, amiúde, cada um dos seus momentos vividos ali; sabendo que a sua alucinação, representada na figura de Jerônimo, jamais o levará de volta ao pesadelo, ao tormento. Volta-se ao lugar maravilhoso, concebido por Abílio, o seu pai, e isto é o que vai apoderar-se da sua visão.
O plano 2 - é o da retórica, ou seja, o plano da própria trama. Nele, os elementos da ficção, os recursos retóricos (personagens, ação, ambiente, tempo) obedecem a dois climas emocionais bem diversos, da bipolaridade: o da loucura e o da lucidez.
O autor usou de simbologia para compor o seu romance: – Nas ações que se desenvolvem no vale, o mundo exterior é o símbolo do mundo interior, da alma de Alexandre; – De uma forma ilógica, em um cenário fantasmagórico, pessoas, animais e a própria natureza se movimentam. O vale é o fórum da maldade; naquele lugar, o autor deixa os personagens agirem de maneira sórdida, como os humanos tratam as causas humanas; a escala de valores encontra-se em perfeito descalibre, permitindo toda sorte de inferências humanas, como roubo, estupro e traição.
O chocante é que o universo onde transcorrem todas aquelas alegorias malfazejas, restringe-se ao quotidiano do Vale do Ouro. Ali, não há igrejas, não há escolas, não há jardins e ninguém sorri.
A simbologia, além da linguagem está impregnada nos lugares como:
Observando a natureza física – o Vale – um lugar cercado de montanhas, que remete o leitor a cadeias, muralhas, se configura numa prisão, embora o narrador as descreva, como muros de proteção aos habitantes, colocando-os a salvo dos perigos externos. Quando Adonias coloca na narrativa “nós, os seus mortos” ele está criando a idéia de um cemitério de mortos-vivos.
Para Erich Fromm, o raciocínio leva a entender o vale como uma obsessão, uma loucura que isola o ser humano dos seus semelhantes. A atmosfera do lugar é de sedução, fascinação exercida por dotes naturais ou por artifícios, por trama ou maquinação de seu personagens.
A estrada representa a própria vida do vale: ela é colocada dentro da narrativa como o seu principal símbolo. Muitas vezes ela se mostra cheias de possibilidades, aos olhos de quem ali vive, alimentando-os como sendo ela (a estrada), o espaço de idealizações; todavia, quando ela se apresenta longe do foco da personagem, ela é utópica.
O vento – Na voz de Alexandre, é o Demônio vivo, pois que açoita o vale. Crestando tudo, traz o desassossego e obriga os seus moradores a viverem isolados do seu próprio habitat, devido ao regime de vida, obrigando-os a viverem de janelas fechadas, uma condição arbitrária, imposta por ele – o vento.
A água é símbolo de movimento, ciclo de vida e de paz, a sua ausência é certeza de morte, de falência do Vale do Ouro. Os poços, os córregos e ribeiros são o que possibilitam a existência das árvores gigantescas, de negras copas, prenhes de vida. Quando seus córregos secaram-se, e receberam, no lugar da água, a camada de lodo, as serpentes encontraram no lugar, a associação própria à degradação do vale. A presença do lodo e das serpentes, portanto, simbolizam as maldades latentes que ali encontraram paragem.
Trovões e nuvens negras significavam terror, medo do desconhecido, representavam os perigos que ameaçavam desabar sobre as desesperanças reinantes. Enquanto pairavam acima, nos céus, aquelas nuvens tinham a eficácia de uma avaliação, por parte dos deuses algozes, prendendo aquelas vidas, ao vale, eternamente. “Ergue-se novamente dentro de mim, a sensibilidade antiga, uma espécie de música sem ritmo, subjugando o vento.”
Alexandre, o personagem principal, foi retratado pela articulista do “Estadão”, Maria S. Brito, quando do lançamento da 2a edição de MEMORIAS DE LÁZARO, no Suplemento Literário, de 23 de maio de 1970, como aquele que centraliza-se em uma obra, cujo enredo “ apresenta uma história de queda, ressurreição e morte”; Costa Lima acrescenta ao perfil da personagem, como adendo àquela concepção, ao nosso modo de ver, a desnecessária ressurreição para a vida espiritual. No que concerne à queda, enfocada pelo jornal paulista, a vida de um ser humano vem como ondas: alterna-se em altas e baixas, às vezes rasteja-se pela areia e muitas vezes explode nos ares.
Como representante de uma legião pertinente ao vale, Alexandre luta à procura da redenção; como as saídas se apresentam em círculos, íngremes, sem veredas, circundantes, dificultam qualquer fuga, daquele caos. O personagem logra saída através do braço da floresta, réstia de luz salvadora, que ludibria a segurança do vale. Recobrado de sua loucura, ele retoma a sua infância: retorna aos 4 anos de idade, quando rasgava, encantado, a sua floresta, levado pelo braço de Jerônimo. Para quem, no mais das vezes, viveu mergulhado em seu estado alucinógeno, o braço da floresta simboliza os fortuitos momentos de lucidez de Alexandre.
Entendemos a ressurreição dessa personagem, como única, em qualquer plano; era no justo momento de lucidez quando ele encontrava-se levitado. Lutou, como um condenado, quando foi viver na vila de Coaraci, para manter-se a salvo dos diabinhos que o empurravam para o lodaçal. Apesar do seu esforço, os maus-espíritos o dominavam e o levavam de volta ao vale. Nesse seu retorno, porém, a estrada já não é a mesma, nem sequer o vale. Alexandre quer buscar no passado, fatos, pessoas ainda presas às sombras tenebrosas da terra, querendo vir buscá-lo, para libertá-lo, o que só o consegue através da morte: “Ocultam-se, num corte fulminante, o vale e o vento. Tudo se vai fechando, aos poucos, com serenidade e imensa quietude”.
Jerônimo – Se Alexandre é a personagem principal, Jerônimo é mais fascinante. Jamais saiu do vale. Surgiu com Abílio, depois, abandonado por este, levou Alexandre, menino ainda, para a solidão da sua caverna, no interior da rocha. Jerônimo existiu ou representou apenas o lado enfermo da personalidade de Alexandre? Ele era aquele caráter violento, que habitava a caverna, ou era somente a demência que Alexandre herdara de Abílio. O certo é que Jerônimo transferiu para Alexandre, claros antecedentes de loucura de Abílio, os quais permaneceram como entraves, que o impediu de libertar-se das amarras da alienação e do crime: “Como se o vento do vale soprasse nos meus ouvidos, e, no próprio vale eu estivesse a andar na grande estrada, senti nos ombros, pesadas e agressivas, as mãos de Jerônimo (...) a imagem de Jerônimo chamava-me aos berros, como um enfeitiçado... “
Nos instantes finais, quando Abílio reaparece para mostrar ao filho a estrada longa da redenção, Alexandre vê-se preocupado, com a possível chegada de Jerônimo, para censurá-lo. “Venha a luz, com a manhã (...) pois eu sei que Jerônimo chegará muito mais tarde”.
O tempo pode ser dividido sob duas formas: – cronológico ou histórico, e psicológico ou
metafísico.
O tempo cronológico é marcado pelo ritmo do relógio; pela alternância da noite e do dia, pelo movimento das marés, pelas estações do ano, e até pelo movimento do sol. Quanto ao tempo interior, é o tempo psicológico de que falamos; é o tempo imerso no labirinto mental de cada um: cronometrado pelas sensações, idéias, pensamentos, vivências, sem idade ou razão. Tudo o quanto sentimos, ficou acumulado num espaço sem limites, quando muito, circular. Nneste processo, as sensações vão-se acumulando, sem cronologia.
Onde tem lugar a ação, Adonias Filho utiliza esse elemento perfeitamente sincronizado; quando dispõe desse artifício, chega a esquecer as personagens, o próprio tempo marcado pelas horas, envolvido que está no tormentoso tempo psicológico de Alexandre: este, submerso no interior das brumas de suas doentias lembranças. As referências ao tempo histórico só servem para marcar mais fundo a agonia e a desesperança dos seres que vegetam naquele ambiente povoado de fantasmas.
No ambiente/vale, inexistindo a noção de tempo histórico, não há conexão entre os elementos temporais, tampouco, interesse em se precisar tempo objetivo ou cronológico. Conta, no todo, as paixões em jogo, os conflitos e as lutas que travam seus personagens contra a solidão, os demônios e a falta de perspectivas. Nos momentos de lucidez, porém, o tempo cronológico se faz presente, por exemplo, na aldeia de Coaraci, quando Alexandre vai estar com Terto, ou quando esteve com Natanael. Esses são momentos tranqüilos, apenas cortados por alucinações provocadas pelos maus tratos, cuja passagem devolve a Alexandre a fraqueza, somente experimentada, quando este se encontra no Vale do Ouro.
Tratando o tempo dessa maneira, Adonias passa a construir os episódios em outro estilo: de maneira mais clara, mais direta, coadunando conceito de tempo histórico, de acordo com as ações reais dos personagens; uma prova disto é o momento em que Alexandre, ao reencontrar-se com Terto, dorme, acorda, passa a acompanhar o desenrolar do dia, marcando-o, pelo compasso das horas.
Ao adotar-se o tempo cronológico, o romance passa a desenvolver-se em um cenário mais concreto; sem os efeitos da natureza, abre-se espaço para o aparecimento de figuras como o governo, índios... até o coletor de impostos: “há dois ou três anos, estas terras eram do governo. Daqui para a aldeia, leva-se oito dias de viagem. Chegaremos dentro de poucas horas. Permaneci, morando naquela casa, durante muito tempo. Dois anos ou mais...” – Alexandre, recobrando-se, mostra-se capaz de apontar o tempo decorrido, desde a sua chegada àquela aldeia, algo impossível nos tempos do vale.
Mais uma vez, o autor volta a envolver-se com os temas de sua preferência: o isolamento em que vive o ser humano, uma condição cada vez mais contundente, em determinadas camadas da sociedade, além da carência de afeto, que advêm dessa solidão.
Inconsciente, talvez, Adonias critica também o primarismo nos imposto, pela Coroa Portuguesa, ao longo de séculos, desde o Descobrimento à instalação da Primeira República. Ainda que discorra em ambientes menos densos de mistério e tragédia, os seus personagens, sempre ricos de substância dramática, vão deixar transparecer a necessidade de refúgio e de isolamento.
Em Memórias de Lázaro, Adonias tenta criar, obstinadamente, as saídas para os nossos conflitos, embora se utilize de recursos sinistros para dar vida às suas personagens, e às tramas com que elas se vêem envolvidas. Traz a desesperança, porém busca encontrar uma forma de protegê-los, em seus espaços mágicos, locais em que eles se refugiam. Em suma, Adonias, parece escrever certo, embora seja por linhas tortas que ele vai encontrar o caminho para guiar o seu povo até a Canaã idealizada.
Carlos Kahê