segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A vinha nas mãos dos mais justos

A VINHA NAS MÃOS DOS MAIS JUSTOS

Na Bíblia a vinha é usada para simbolizar o povo. Parábolas afins foram contadas por Jesus, textos bíblicos foram escritos por Paulo e Isaias para advertir aos governantes sobre a importância desse povo para Deus. Há uma certeza de que Deus colherá os frutos que deseja, confiando sua vinha a bons agricultores. Aos que exercem cargos de liderança indagamos: Quais frutos Deus espera de vocês para alimentar o seu povo? Não se corromper pelo poder e servir com responsabilidade ao bem coletivo já seria um excelente fruto. Sempre que surge um novo líder buscamos nele a autenticidade, responsabilidade e preocupação com o bem do povo; um bem que os leve ao protagonismo, que não os deixem entregues à sorte, que construa-lhes um destino.
A nossa cidade, aos olhos de quem bem a conhece é aquela videira fértil cantada pelo profeta Isaias: dela aguardávamos a produção de uvas de excelente qualidade, mas que só tem produzido frutos selvagens. Cabe-nos perguntar a nós mesmos: O que poderíamos ter feito a mais por nossa vinha e não o fizemos? Contávamos com uvas de verdade; mas por que só colhemos frutos selvagens? Será se não coube a nós a culpa de ter desmanchado a cerca? Decerto ela foi arrancada pelos vinhateiros; ela foi devastada, porque se sentiu no abandono, e por isso foi pisoteada, tornou-se inculta e selvagem. Tornou-se terra de ninguém. Por muitos e muitos anos, a vinha não foi podada, nem lavrada, e assim, espinhos e sarças tomam-lhe os espaços... Nem as nuvens quiseram mais derramar chuva sobre ela. Quem vai às suas ruas e praças não é difícil deparar-se com soldados jactansiosos e um monte de parasitas lamentando o triste fim de “Policarpo Quaresma”; nos bares encontramos jovens esbanjadores refazendo a apologia das meretrizes; pais avarentos fazendo “aos poderosos” as últimas recomendações da filha amorosa, sempre interrompido pelo servo idiota com um recado da alcoviteira...
A vinha com o passar dos anos troca de mãos e a multiplicação dos últimos quadros nas praças e ruas já é esperada, embora aconteçam algumas baixas: há a graça de morrer o hipócrita, há a tristeza de o soldado ser substituído pela filha referendada e o idiota ser ultrapassado pelo astrólogo. A população se renova, os jornalistas morrem um após outro, entretanto nascem aqueles que assumirão seus lugares no diálogo...
Quando alguém assume um novo papel e chega à praça pela primeira vez, verificam-se mudanças em cadeia, até que todos os papéis sejam novamente redistribuídos; enquanto isso, o velho irado continua a retorquir a camareira espirituosa, o usurário não pára de extorquir o jovem deserdado, a enfermeira entende de consolar a enteada, e não notamos em nenhum deles os olhos atentos à cena precedente.
Descobrimos, entre os documentos abandonados, a pasta de um velho dialogador ocupando dois ou mais papéis: tirano, benfeitor, mensageiro... Com o passar do tempo, os papéis não são mais exatamente os mesmos; sem dúvida a ação que estes levam adiante, por meio de intrigas e reviravoltas, conduz a algum tipo de desfecho, que continua a se aproximar mesmo quando a intriga parece se complicar-se cada vez que os obstáculos entendem de aumentar. Quem vai às praças e ruas diariamente nota que as cenas se deterioram, de ato em ato, ainda que a vida dos habitantes seja medíocre demais para perceber.
“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular... Quando voltar os donos da vinha, o reino de Deus vos será tirado e entregue a um povo que produzirá frutos”. Portanto, a você que veio para herdar essa vinha, encontrará uma cidade tomada pelos pavões de barro; ela, que outrora fora um celeiro de esperança, da água limpa do rio até seu estuário, transformou-se nesse buraco negro de moscas e pernilongos: a cidade das ruas empoeiradas e sujas de papel de excrementos e de sarcasmos... “Ocupai-vos com tudo que é verdadeiro, respeitável, justo, puro e honroso. Tudo que é virtude e que mereça louvor, a fim de que possamos ver a pronta transformação do nosso reino particular, o bom cultivo da nossa vinha e o florescimento da justiça.
Carlos Kahê

A mulher do tenente francês

A mulher do tenente francês
A mulher do tenente francês é um dos mais cultuados romances de John Fowles (1926–2005). A história se passa na Inglaterra, em 1867. Charles Smithson é um nobre inglês, noivo de Ernestina, filha de um comerciante. A diferença de berços é significativa: enquanto Charles é um cavalheiro, sua noiva faz parte da burguesia emergente, classe cada vez mais poderosa financeiramente, mas que ainda era ridicularizada pela fidalguia. Para Charles, é um casamento oportuno, embora a mistura de classes não seja o melhor dos mundos: aos olhos de quem possui a nobreza no sangue, unir-se à classe trabalhadora, aos novos ricos cuja educação será sempre um arremedo da fidalguia é um inegável sinal de declínio. Nas palavras do narrador, em Londres, em meados do século, já começara uma estratificação plutocrática da sociedade. Naturalmente, nada podia substituir uma boa linhagem, mas, em geral, já se admitia que o dinheiro e a inteligência eram capazes de produzir artificialmente um sucedâneo bem razoável da posição social aceitável.
Esse momento histórico é descrito com muitos detalhes. O narrador atenta para as vestimentas das boas moças, bem como para as diferenças entre a moda londrina e a provinciana; divaga sobre os valores conservadores que fazem dos personagens vitorianos o que são; comenta as origens dos movimentos pela igualdade de direitos da mulher, e lembra o leitor mais distraído que, no momento histórico descrito, O capital de Karl Marx estava para ser publicado, enquanto A origem das espécies, de Charles Darwin, mudava lentamente o modo de pensar daqueles intelectuais.
John Fowles escreveu o que muitos chamariam de romance histórico. Embora não haja aqui nenhum grande acontecimento histórico que possamos chamar de paradigmático (como a queda de Napoleão em A Cartuxa de Parma, ou a Revolução Francesa em O conto de duas cidades), há um recorte histórico preciso, de um momento de transformação social determinante na vida íntima dos personagens, e do qual estes, por sua vez, se tornam representativos.
O passado, em A mulher do tenente francês, é visto com distanciamento: o narrador comenta insistentemente as diferenças entre o tempo da narração (1967) e o tempo narrado (1867), debatendo as idiossincrasias da época vitoriana, sem poupar comentários irônicos. “Bem, a gente ri”, afirma o narrador; afinal, “nada é mais incompreensível para nós que esse comportamento metódico dos vitorianos”.
O trato irônico com a matéria histórica é um dos fatores que renderam a John Fowles a alcunha de romancista pós-moderno. Teóricos como Linda Hutcheon vêem no comportamento de seu narrador um exemplo bastante representativo de como a ficção histórica contemporânea (a chamada “metaficção historiográfica”, para usar uma expressão cara à autora) não revisita a História com nostalgia, mas com ironia e senso crítico. Não vale a pena dissertarmos aqui sobre os imperativos do que se convencionou chamar de narrativa pós-moderna, até porque o próprio conceito de pós-modernidade está, ainda, bastante aberto ao debate. Mas seria impossível comentarmos A mulher do tenente francês sem nos referirmos a alguns dos procedimentos literários normalmente associados à ficção dita pós-moderna. Dentre eles, a obsessão pelas referências intertextuais e pela metalinguagem.
O intertextos são muitos: estão nas epígrafes, todas retiradas de obras clássicas do século 19 (poemas, tratados científicos, romances) e no corpo do texto, em referências mais ou menos veladas a cenários e heroínas da época, saídas dos livros de Jane Austen. São referências que ajudam não apenas na reconstituição histórica, como também na elaboração de um modelo literário e de pensamento com o qual o romance dialoga criticamente.
Já o narrador de John Fowles, além de ironizar o passado histórico que descreve, debate sem pudor as opções dos personagens, suas inseguranças, mesquinharias e caprichos. E não hesita em, por exemplo, condenar um personagem particularmente odioso ao fogo dos infernos. Além disso, o narrador também comenta suas próprias opções estilísticas, desde o uso supostamente exagerado de pontos de exclamação até certos comentários paralelos à ação, a serviço da “cultura inútil” do leitor.
Alguns dos momentos mais célebres do romance são, precisamente, aqueles em que o narrador discorre mais detidamente sobre a literatura. Por exemplo, quando disserta sobre os motivos que levam os romancistas a criarem suas histórias:
Só há um motivo compartilhado por todos nós: Desejamos criar mundos reais como aquele em que vivemos, mas diferentes. Por isso não podemos fazer planos. Sabemos que o mundo é um organismo, não uma máquina. Também sabemos que um mundo genuinamente criado deve ser independente de seu criador; um mundo planejado (um mundo que revele totalmente seu planejamento) é um mundo morto. Nossos personagens e nossa trama só adquirem vida quando começam a nos desobedecer. [...] A questão é que, além de ele [Charles] ter começado a ganhar independência, eu devo respeitá-la e renunciar aos planos quase divinos que concebi para ele, se quiser que ele seja real [...]. O romancista ainda é um deus, uma vez que cria (e nem mesmo o mais aleatório romance moderno de vanguarda conseguiu eliminar totalmente o autor). O que mudou é que já não somos mais os deuses da imagem vitoriana, oniscientes e prepotentes, mas sim os de um a nova imagem teológica, em que nosso primeiro princípio é a liberdade, não a autoridade.
Um narrador onipotente?
É esse princípio da liberdade um dos temas mais importantes do romance. Apesar do casamento iminente, Charles se vê atraído pela estranha figura de Sarah Woodruff, uma empregada conhecida como “a mulher do tenente francês”. Isso porque, de acordo com a população local, ela teria tido um caso amoroso com um oficial francês que a teria abandonado. Esse passado a qualifica como uma prostituta aos olhos do puritanismo vitoriano (e algumas das observações mais divertidas por parte do narrador dizem respeito à vida sexual vitoriana). De modo que Sarah é quase uma pária local. E a atração de Charles por essa misteriosa moça parece ser proporcional a sua aversão ao mundo burguês ao qual está fadado.
A metáfora mais importante do romance talvez seja a da evolução das espécies de Darwin. O homem vitoriano, a exemplo de qualquer outra espécie, precisa se adaptar para não sucumbir aos imperativos da evolução. Ou seja: Charles precisa se adaptar para sobreviver, o que significa abraçar o trabalho e sua nova vida burguesa. Mas o narrador insiste no contrário. Que os personagens são independentes, e não estão totalmente sujeitos aos imperativos de sua época. E que, de certa forma, o personagem é tão mais forte quanto mais resiste à adaptação, buscando seu próprio caminho. É uma idéia compartilhada por muitos autores contemporâneos, a de que o personagem tem liberdade de ação, e não está submetido aos caprichos do autor. Funciona como metáfora para a idéia de que a obra literária está sempre em aberto, e a história permanece incompleta, a ser concluída pelo leitor. Ou como recusa ao determinismo realista do 19.
John Fowles aproxima-se do modelo do romance vitoriano para negá-lo, ao final. Não sem antes lhe reservar um último golpe: o final em aberto. Não que o romance termine inconcluso; mas possui dois finais possíveis. Na verdade três, incluindo outro desfecho alternativo insinuado pelo narrador mais de 50 páginas antes do fim. E, para comentar essa estrutura inusitada, o narrador toma uma atitude igualmente insólita: torna-se ele próprio um personagem, adentrando a história e observando os eventos a uma certa distância. É claro que o apenas o leitor mais apressado confundiria o narrador e sua persona com o autor do livro, John Fowles. Não podemos sequer garantir que pensem da mesma forma.
Portanto, é o narrador personificado na narrativa, e não John Fowles, que conclui sua tese ao final do romance, e que pode ser resumida em uma de suas últimas epígrafes: “A evolução é simplesmente o processo pelo qual o acaso (...) colabora com a lei natural para criar formas vivas melhores e mais aptas à sobrevivência”. Fica-nos a impressão de que estivemos lendo um romance de tese, e que o narrador submeteu personagens determinados por sua época a uma experiência ― ao modo do romance naturalista ― para ao final afirmar a independência desses seres. E o papel do acaso na adaptação das espécies literárias.
Mas esse não é um romance realista, e as conclusões não são tão óbvias. O leitor mais atento pode-se perguntar, por exemplo: a maneira como o narrador adentra o romance e manipula deliberadamente seu encerramento, não termina por ser mais uma declaração de onipotência divina do que uma atitude de sujeição aos desígnios do acaso? Ou seja: embora negue ser um Deus onisciente, não termina por sê-lo, agindo como um titeriteiro, que manipula suas criaturas em favor de uma tese literária?
A questão fica em aberto. Como em todos os grandes romances.
Referência:
FOWLES, John. A mulher do tenente francês. Trad. Adalgisa Campos da Silva. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

VEREADOR SEM SALÁRIO

VEREADOR SEM SALÁRIO
O festival de horrores e de mau gosto assalta mais uma vez as ruas com a polifonia infernal a profanar os alicerces das cidades brasileiras com suas lengalengas cansativas: homens éticos e mulheres guerreiras (des)comprometidos com a verdade e amor à verdadeira causa política, nos aparece com promessas vãs de ocupar o Olimpo e transportar as nossas vidas para o Paraíso.
A Biblia equivicou-se, ao nos sinalizar com a volta do anjo bom; ao que parece, o que nos aguarda é essa horda de interesseiros a nos privar do direito à paz. Gostaria de ver perpetuado em nosso desejo um decreto apagando o salário dessa corja, a fim de presenciarmos o declinio de amor e outros malempregados sentimentos tão "afamados" nesses últimos dias.
Em vez de legisladores pagos com dinheiro público, a grande maioria dos países membros da ONU têm conselhos de cidadãos formados por representantes comunitários: pessoas destacadas na sociedade, mas sem remuneração pela atividade; portanto o cargo de vereador é praticamente uma exclusividade da legislação brasileira. Na grande maioria dos países, a figura do legislador municipal inexiste; em seu lugar há os conhecidos conselhos de cidadãos que trabalham sem ônus para os cofres públicos.
Esses conselhos são reconhecidos pela população e sua formação obedece a uma convocação superior. Isto já funciona em todas as cidades brasileiras: peguem como exemplo o colégio de cidadãos (homens e mulheres) que trabalham em parceria com o judiciário, na instância cível, quando da necessidade de se constituir um corpo de jurados. Dentre os colegiados, convoca-se um contingente, cujos nomes são submetidos a sorteio, momentos antes da seção, a fim de que a seleção não fuja aos verdadeiros preceitos da ética, da isenção e do exercício de direito.
Voltando ao que acontece em todos os países e em algumas cidades brasileiras, nenhum desses conselheiros (vereadores) sobrevive da política e sim de suas atividades profissionais. Geralmente são juízes, promotores, gerentes de banco, advogados, líderes comunitários, membros de clubes de serviço, associações de bairros e outros cidadãos verdadeiramente interessados nos trâmites legais dos projetos do Executivo municipal.
As reuniões, a exemplo do que já ocorre em algumas cidades do sul do País, acontecem em auditórios públicos, sem a estrutura física de uma Câmara Municipal, nem servidores ou comissionados à disposição dos conselheiros.
Esta idéia não gera nenhuma novidade, mesmo no Brasil, onde o formato legislativo é único. Recentemente, mas precisamente em julho deste ano, a prefeita Iracelis da Fonseca Borghi, do município paranaense de Iraí, sancionou uma lei que extingue o salário dos vereadores para a próxima legislatura. Com a sanção, os vereadores eleitos na cidade, no pleito deste ano, não terão mais rendimentos pelo desempenho da função pública. O município, localizado no norte do Estado do Paraná, tem cerca de 12 mil eleitores e oito vereadores, além do presidente da Câmara Municipal. A lei foi proposta e aprovada pelos próprios vereadores da cidade, sendo cinco votos a favor e três contra, no dia 22 de junho.
Até meados de 1977, o trabalho de vereadores não era remunerado, à exceção das capitais e cidades com mais de 500 mil eleitores. Somente após o Pacote de Abril – conjunto de leis outorgado pelo general Geisel, em abril de 1977, visando evitar o avanço da oposição ao regime, foi que os vereadores passaram a receber proventos. Portanto, vereadores são assistentes sociais de luxo e não há nada que eles fazem que um conselheiro isento de remuneração não faça.
Muito mais trabalho tem, por exemplo, um provedor de um hospital, como o da Santa Casa de Itabuna, cujo trabalho é sem remuneração, o que nos remete ao modelo do cidadão que pode e deve participar do tal conselho aqui abordado.
Prestem atenção ao perfil dos candidatos de sua cidade e tentem encaixá-los no moderno sistema de trabalho produtivo, cuja aplicabilidade passa pelo estágio, pela experiência e pela lisura. Ninguém que chegue para uma entrevista de emprego, na atual conjuntura, estará isento de provar sua capacidade e sua experiência no setor pretendido. Estar com a faculdade concluída, de preferência com um curso de pós-graduação é o requisito básico; as demais exigências passam pelo conhecimento de mais uma língua, obviamente, o conhecimento da língua portuguesa tem que ser inerente ao candidato; a ficha pessoal limpa, ou seja, sem antecedentes criminais ou o nome incluído em qualquer cadastro de inadimplência, fatores naturais em qualquer cidadão que se pretenda apto a assumir um cargo, quer no regime estatal ou nas empresas multinacionais, cujas exigências são ainda mais rigorosas.
O povo, para quem as leis e os serviços são criados é quem deveria tomar a iniciativa pública de exigir que mudanças, como esta, venham acontecer no legislativo, mas um ser magnânimo, em pleno gozo do direito, também poderá fazer este bem a sua cidade, a exemplo de Irai no Paraná: a iniciativa partiu de um vereador do PDT. Sem o respaldo financeiro, fica mais fácil identificar aqueles que realmente amam sua cidade. Esta é maneira mais eficaz de se aferir uma aptidão para a causa pública, afinal a vereança seria o estágio adequado para a capacitação profissional de um político de verdade. Depois viriam os pleitos definitivos: prefeito, deputado, senador...
PS: Em todas as cidades brasileiras existe uma verdadeira legião de homens e mulheres de bem que abraçaria o papel de conselheiro, dentro da verdadeira ética, do amor e da moral, sem exacerbações populares. E pasmem! Sem salário!

Carlos Kahê

quinta-feira, 24 de julho de 2008

O ESTADO É UM BOM RIO

O ESTADO É UM BOM RIO
Oran e sua família passaram toda a sua vida à margem de um rio. O bom rio os ajudava de muitos modos. Na primavera, crescia com marés imensas extraídas dos derretimentos da neve sobre uma centena de montanhas, onde localizava sua fonte. O rio corria tão largo, tão fundo e tão vermelho aos seus pés, que Oran era incapaz de perceber a imensa rede estendida sob as estacas onde se sentara. A rede vivia repleta de peixes. Como a força do rio é impressionante sob a água turva? Nas manhãs nevoentas, a própria margem do outro lado era impossível vê-la absolutamente. Oran nem imaginava que se sentava à beira de um oceano lamacento. Seu pai não era pescador, era lavrador, mas tirava daquele rio o que se tornara impossível na sua labuta. Sob o olhar de Oran, passavam barcos desde os botezinhos de pescar nos juncos, aos veleiros com olhos pintados a olharem para ele, de suas proas. Uma vez ou outra apareciam embarcações baixas, estrangeiras, a lhe oferecer emprego em escolas ao custo de um voto. Oran, que não sabia o que era Escola, odiava esses barcos. O rio também os odiava: inchava sempre em coléricas ondas; balançava-se para trás e para diante, quando eles passavam; às vezes, as ondas elevavam-se tão altas que os pequenos barcos de pesca quase viravam. Quando isso acontecia, os pescadores lançavam pragas em voz alta contra aqueles navios estrangeiros.
As cheias eram terríveis para a família de Oran. Quando elas vinham, eles mal conseguiam dormir, pois a água murmurava pertinho de suas camas. A princípio, ele pensou que a água não pudesse chegar mais perto, até vir uma enchente maior e trazer o pavor nos olhos de seus pais. A desgraça chegara a suas vidas e eles tinham que rumar para uma enseada mais calma. No novo lugar, sem trabalho, acabou-se a comida, e tampouco os barcos do antigo porto passavam mais com seus olhos pintados. Barco nenhum passara naqueles dias. Parecia outra vida. A família de Oran se sentia como única remanescente sobre a terra. Certo dia passou por ali um feiticeiro e lhes ofereceu um livro. A família de Oran quis saber:
– O que fazemos com ele? Se come? Ao que o feiticeiro respondeu:
– Leia-o! - Oran e sua família jamais viram um livro de perto.
– A senhora já leu, mãe? O que encontrou aí dentro?
– Na verdade nunca li. Quando tive eu tempo para tal coisa?... Tinha de trabalhar! Só as pessoas ociosas vão à escola... Gentes da cidade! É verdade que meu pai falava em mandar o meu irmão mais velho, por causa da aparência das coisas... Meu pai era um homem orgulhoso, a ponto de achar que na família deveria ter alguém que soubesse ler e escrever. Meu irmão chegou a passar lá uns três dias, mas cansou-se de ficar tanto tempo sentado: chorou, amuou e fez tanta pendenga que seu avô desistiu da idéia. Oran ficou pensativo e quis saber:
– As moças da cidade lêem livros?
– Ouvi dizer que é a nova moda. Mas que utilidade poderá ter para uma moça é que não sei. Tem sempre de fazer as mesmas coisas: cozinhar, costurar, fiar, estender a rede e, quando se casa, faz as mesmas coisas de novo e dá também seus filhos à luz. Os livros não podem auxiliar uma mulher...
Chegou o tempo de o rio baixar, mas não baixou. Continuava alimentado por um secreto e inexaurível oceano. Oran começou a sonhar com os barcos do antigo porto, e todo dia sentava-se em frente ao rio a esperar pelas carrancas que lhe vinham amedrontar com seus olhos pintados...
Passados alguns dias, eis que surge no horizonte um barco imenso, as hastes blindadas, ostentando uma estrela solitária. Oran ficou a observá-lo sem dizer nada. Gostaria de dizer: “Salve a minha família que tem fome!” No entanto, tinha tanta vergonha de falar, que se emudeceu à passagem do barco. Vendo-os tristes e sem saída, a tripulação abaixou a âncora e os fez subir. Eram os alquimistas. Oran já ouvira o vento dizer: “os alquimistas estão chegando. Eles são discretos e silenciosos...”.
Os alquimistas os levaram para a cidade e os empregaram nas escolas, nas unidades controladas pelo Estado. O pai de Oran, humildemente, perguntou:
– O que vamos fazer nas escolas?... Não sabemos ler nem escrever! O comandante esteve a ponto de esbravejar, resmungou com impaciência:
– Votar!... Sabem o que é isso? Depois das eleições será outra história. Ora, depois de votar vocês retornam à vidinha besta de seu rio!
Oran e sua família jamais iriam imaginar que aquele barco os estava levando a conhecer dias fartos. Se soubessem como avaliar os seus dias, não deixariam livro algum dizer que o seu Rio estava em estado de putrefação; que a patriótica corrupção dos tripulantes nada tinha a ver com a escola da imoralidade, nem que eles dispõem do bem público para fazer e acontecer; que a vida privada de seus agentes não se acabou, nem bateu recorde algum de lamentáveis vergonhas. É mentira que o Rio deixa que pobres se empobreçam cada vez mais; que o Estado industrializa esmolas em trocas de votos. A descompostura, a desonra, a rapinagem e a iniqüidade da corrupção, explicada com singela esperteza eleitoral jamais fora contabilizada como contumácia... A família de Oran, comendo desses frutos, jamais iria admitir tanta injúria contra um Rio tão bom...
Carlos Kahê

domingo, 17 de fevereiro de 2008

O BAILADO HUMANO

O BAILADO HUMANO de Carlos Kahê

O escritor itabunense, Carlos Kahê, lançou no último inverno, no Rio de Janeiro, o seu belíssimo livro de contos, O BAILADO HUMANO, pela Editora 7Letras. As datas para as noites de autógrafos, por ordem de cidade, seguiram a seguinte seqüência, Rio (Argumento, Leblon), Itabuna (Foyeur do Starplex Cinema) Vitória da Conquista (Arena e Nobel), Salvador (Academia de Letras da Bahia), Sete Lagoas (MG) (Casa dos Drummonds) e Itagimirim, no extremo-sul baiano, terra do escritor.
O BAILADO HUMANO é um belo livro de contos escritos com alma, por um autor que preza o idioma. A sua mensagem subjetiva, poética é encantadora. Kahê é sublime, ao escrever – na minha opinião, o melhor trabalho publicado, no âmbito literário, nos últimos anos. Mestre que ensina e que aprende, que inova e se renova, Kahê burila a eloqüência posta em seus livros para brindar-nos com inúmeras imagens e leveza nas palavras. Embora não escreva em versos, é poeta porque vive a poesia; é um escritor que não se deixa levar pela ansiedade, e vê o que a nós humanos comuns passa despercebido. É essencialmente contador de histórias, às quais sobrepõe lirismo e imaginação fértil.
A pedra e o nada – conto que abre o livro – é um grito de alerta para as doenças degenerativas que assolam o nosso tempo, e nesse grito, está inserido o apelo de inclusão sociológica de alguém que pode estar ao seu lado, caro leitor. A insígnia (Alma&Zai) evoca, em seus entrelaçamentos, o mal de Alzheimer. O autor expõe o intrínseco, ao incursionar pelo psicológico, e revela, nessa sua viagem, que o ódio e o rancor têm raízes profundas, tanto quanto o amor e a paixão. Se mal cuidados, podem nos levar a fechar os olhos para o que de interessante o mundo nos oferece. Ao transpor a linha visível, leva-nos a conhecer a imagem latente que doma a psique da personagem; imagem essa simbolizada pelas luzes da efeméride, esmaecendo, inexoravelmente, como um conta-gotas indicando a porta de saída da vida. Em, A dor propriamente, um pai tenta livrar o filho de um processo criminal, ao empunhar a arma usada por este, em ato frio, criminoso. Ao assumir a culpa, ele deixa que lavem o seu entardecer – pois estava na casa dos oitenta anos – com uma enxurrada de deturpações e julgamentos precipitados. Kahê discorre sobre fatos, enfeitando-os com suas metáforas, e o leitor passa então a entender que se trata apenas de um colóquio literário. Sem nomear personagens ou situações, ele transforma um caso de polícia, em ato de amor; e o pai – um simples homem dominado pelo desespero e pela vulnerabilidade – num rio ressequido, um lago onde a dor propriamente habitava. Em, O Homem do terno-azul, ele homenageia o homem simples de sua cidade; ressalta valores, símbolos e manifestações folclóricas, contudo, sem trazer a lume a biografia de alguém em especial. Faz repercutir, através da vida do seu personagem, a história do homem trabalhador que sacrifica a vida em benefício dos filhos, sem conseguir jamais merecer o devido respeito, ou o mínimo reconhecimento. No caso de Jesuíno, as filhas sempre se envergonharam do seu ofício. “Jesuíno mergulhava o corpo entre os pontos negros das pedras do Cachoeira, para colher do mundo turvo de suas águas o Natal, o remédio e o peixe da Semana-Santa...” Desse ofício de pescador bissexto e de vendedor ambulante, ele lhes deu uma vida digna. Quando entenderam que o pai não podia mais empurrar o seu carroção de lanches na porta dos seus consultórios, as filhas o desprezaram num “abrigo para velhos”, esmagado, como um verme, um fragmento cego. Jesuíno jamais imaginou viver assim. O amor humano e frágil a que tanto devotara, definhava-o nas dobras do esquecimento. Vestia o terno-azul, e punha-se sentado à entrada do asilo, onde morreu solitário, aguardando “suas meninas” o visitarem. O passageiro da chuva. Um garoto de dez anos, numa tarde-noite de tempestade, passa a refletir as condições de sua família, vivendo numa casa antiga, terrificados, vulneráveis, a mercê de temporais. O autor repassa ainda o mistério ocorrido naquela noite, da visita de um compadre, durante tempestade. Como explicar fatos que acontecem na vida de pessoas superiores, capazes de ouvir sinais de acontecimentos longínquos? Como justificar a despedida de um amor compadre, tão romântica, acompanhada pelos ouvidos de criança tão cheia de curiosidade? Em Sentimento do mundo: um ser feito de poesia, o autor usa a beleza dos versos de inumeráveis poetas, para montar e desmontar histórias de relacionamentos, costurando-as à base de poesias. Nesta costura, ensina-nos a atravessar a rua, a viajar e descer a duas quadras do seu mistério. Ensina como nos apartar de nossas comodidades e viver a alegria das crianças presente em nós. Uma ótima oportunidade para estudantes de Letras dissecarem os poemas propostos. Não faz muito tempo, falou-se que a cidade de São Paulo não tem natureza literária. Assim, não pensam os poetas baianos, Caetano Veloso e Carlos Kahê. O inferno-verde-paulistano aqui apresentado como uma crônica é uma ode a São Paulo, um poema longo, que nos deixa estarrecido com a imaginação que só ocorre a um grande artista: – ”Isolados pela marca indelével de suas diferenças, na altura do parque dom pedro com a consolação, o solimões e o negro confluem para a paulista e ali transcorrem, serenos, silenciando apitos, buzinas, ronco de motores e faróis....” Descrito em linguagem subjetiva, que impressiona e encanta, o poema foi escrito em letras minúsculas, para desarvorar a sintaxe e afinar os verbetes num tom menor de força, dentro de cada verso; discorre sobre o asfalto levando o rio majestoso, fundindo-o com a cidade majestosa, num final brilhante, deixando o leitor ofegante, com vontade de ler outra vez mais. O estranho amante do Grajaú, um espírito sensual atrai uma prostituta das ruas do Rio para a sua mansão, tencionando cumprir um rito matrimonial não celebrado em sua passagem pela terra. ‘O homem cheirava a cravo-de-defunto, não porque escondesse atrás de si um ramalhete tufado com gérbera, que ele mesmo cuidava, mas, pelo hálito sepulcral que despejava, ao falar do trato que dava às ervas e aos florais”. Em O astro, o autor, astuciosamente, tenta seduzir os jovens para as leituras, pois entende que toda forma de arte e convívio requerem aprofundamento e, de forma simbólica, usa a vida de um grande astro “imaginado” Solano Triste, para refletir sobre o sucesso efêmero e a vida ilusória de muitos artistas: “Envelhecem, trocando o cesto da colheita, pelo pesado fardo das lembranças... Após terem gasto sua mocidade e vigor, são no fim da vida fustigados pela negação à velhice; muitas vezes, na pobreza, esquecidos, relegados às vigílias trabalhosas de sempre terem que ressaltar o seu passado. Não raro, a grande recompensa, chega somente após a morte”. Em, A lua-de-mel, o autor conta a história de Kike e Ana Luísa, um jovem casal que, em plenos anos da transformação de costumes e quebras de parâmetros sociais, defendem os reais preceitos morais da família; e, em defesa de sua própria honra, a jovem-esposa, não deixa o marido possuí-la em sua lua-de-mel.O príncipe é o mais humano dos contos registrados em o BAILADO HUMANO. “No final da tarde, o príncipe retornava à casa, de trem, observando o casario triste à margem da linha, e os meninos tristes riscando linhas à margem da vida... Pensava nos filhos e enchia os olhos e o coração de tristeza”. É uma história verídica que brinda o leitor com a vida de Abdias, um homem que pintava de poesia os seus sonhos impossíveis, e delas se utilizava para tornar o mundo melhor. Abdias foi um príncipe que, com resignação e paciência, aceitou os reveses da vida; as gotas que tenha chorado jamais fluiram de um mar salgado de revolta. Escolheu viver apaixonado e morreu afogado num grande lago doce. Um lago brotado das entranhas de sua natureza. Um lago, comumente, chamado de amor. Ao tocar a mão de Bandeira, dissoluto: estrela de uma vida inteira sentimos brotar uma imensa saudade da Líbia ardente, Siria fria, Europa, França e Bahia... Distraídos, esquecemos anos, dias e o canto maior das cotovias... Antes de fechar o livro, Kahê homenageia aquele que considera, entre os poetas, o maior de todos e incita o seu leitor a aprofundar-se no cerne textual do grande poeta pernambucano. Nós, porém ao encerrarmos a nossa leitura ficamos convencidos de ter-nos aproximado da alma de Kahê, e do seu firme propósito de desvendar o homem, amparando-o, dentro da sua existência, através da leveza de suas palavras.
Helvécio Meira
Editor e revisor literário

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

ESTA NÃO É CLARICE


O PAPEL DO FICCIONISTA

A crítica literária estabelecida é fundamental para o entendimento da história dos livros e da leitura. Não fosse assim, obras de autores como Shakespeare, Cervantes, Victor Hugo e tantos outros permaneceriam isoladas a despeito de sua qualidade e, principalmente, profundidade na compreensão do que venha a ser o multiculturalismo, com seus relativismos estéticos, cânones, clássicos, ensinamentos contidos no resistente adágio do teórico francês Roland Barthes, mais precisamente, em seu breve ensaio O prazer do texto.
A escritora, Clarice Lispector, falecida há 30 anos, é um dos literatos brasileiros que mais interessam aos teóricos, desde que a sua obra foi descoberta pela crítica francesa, no final dos anos 70 e 80, coincidentemente, logo após sua morte.

Naquela época, a crítica literária enfrentava uma crise de valores, uma vez que os parâmetros estéticos de então estavam fortemente questionados e os estudos viam-se obrigados a novos direcionamentos, dentro das próprias universidades européias e americanas, tais como o feminismo, o homossexualismo e a as explosões culturais.
Na escrita de Clarice há um limite real da linguagem que esbarra na denominação de um objeto constituinte e que não está em parte alguma, mas se interpõe no curso da vida, como um não sentido que se configura, porque há algo intrínseco, recalcado.

Estudiosos destacam nas suas personagens procedimentos psicanalíticos atribuídos à linha do francês Jacques Lacan; teorias e conceitos defendidos por aquele psicanalista, pela antevisão, possibilidades e os limites daquilo que a palavra não era capaz de dizer, mas que Clarice captava com maestria, que era a posição do sujeito diante do próprio discurso.
Clarice dizia-se não uma escritora, apenas alguém que retirava do mundo as suas dores e sentimentos profundos. Eis o ofício do literato: ao se abrir a janela do universo, os fatos surgem em fração de segundos, de maneira quase imperceptível, para em seguida se dissiparem. Aquilo que se descortina em brevíssimo clarão é tão efêmero que quase nada se percebe e desse descortinar, durante o qual a incredulidade se ausenta é que surgem as grandes ficções.
Clarice Lispector não escrevia para se autoconhecer, pelo contrário, perseguia a neutralidade e aquilo que escapava a toda identidade; buscava o inalcançável, o selvagem que embora selvagem estivesse muito próximo de nós.

Clarice, tampouco, foi uma escritora realista: existem as grandes leituras que nos marcam, que realçam claras conexões com os nossos sentimentos e riscam-nos a sensibilidade, sem que seja preciso nos cimentar entre as paredes dos crus realismos, entretanto, a escrita de Clarice foi fundamentada na identidade com que seus leitores julgavam existir entre eles, e o que estava intrínseco na sua obra.
Influência mesmo ela exerceu sobre alguns escritores, a exemplo de Lúcio Cardoso e Caio Fernando Abreu, a quem a crítica literária disse ter ela mais asfixiado do que propriamente influenciado. Até Paulo Mendes Campos, por quem ela nutriu uma ferrenha paixão, deixou-se levar pelos seus encantos. Hilda Hilst declarou à poeta Marly de Oliveira, íntima de Clarice: – “Ela ronda por aqui, e não sei se é um fantasma ou um personagem”. – Hilda referia-se á possível presença “difusa”, da escritora, na biblioteca da chácara em que vivia, nos arredores de Campinas. Estas pessoas se impregnaram de Clarice.
Ao resenhar sobre a vida de Clarice Lispector, a editora literária, Josélia Aguiar, de Entrelivros, discorre sobre o grau do riso e do exacerbado siso da escritora. Que mistério tem Clarice? Escreveu Drummond no dia de sua morte.

Não havia mistério, poeta! Faltava, sim, a alguns teóricos, assunto ou imaginação, e não há senso de humor para agradar a determinados jornalistas, estudiosos, estudantes e principalmente eteceteras, quando se procura um riso límpido e suave destampado no rosto de uma mulher, não brasileira, ucraniana, que se chamava Haia, e no Brasil foi rebatizada como Clarice; de infância pobre, que quase passou fome, refugiada no nordeste brasileiro, para fugir da perseguição anti-semita e da Revolução Bolchevique.
Quanto mais despejava simplicidade nos seus traçados, mais complexidade os experts diziam encontrar na obra de Clarice. Peguemos a personagem Macabéa, de A Hora da estrela e vamos perceber o olhar tranqüilo e preciso de Clarice, sobre o universo da nordestina: Macabéa, se mostra incompetente para viver as coisas mais simples de sua vida, mas sonha em ser estrela no Rio.

O livro nada tem de complexo, como quer demonstrar os seus aficcionados, tampouco pode ser considerado um romance social. A obra tem efetivamente esse alcance, se quiserem juntar os artifícios sociais com a linguagem usada; ocorre que esta não é a maneira de Clarice tocar no social. Nela, o humanismo emerge fora do contexto geral. Ela geralmente parte do choque entre ideologia e estética. Na sua estrutura narrativa, o social é o elemento que aproxima do literário formando um elemento indissolúvel; ela parte do choque entre ideologia e estética. Na sua estrutura narrativa, o social é o elemento que aproxima do literário formando um elemento indissolúvel: é engano acreditar que lea põe que ela punha nos traços das personagens de suas histórias, o que está configurado na sua essência. Esta não é Clarice.
Carlos Kahê

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

SOSÍGENES COSTA

EM CORES, AROMAS, VINHOS, REQUINTES E VERSOS.
A tarde mal fecha a cintilante janela, chegam os aromas como uma grinalda a ornar a tua sombra. Queima de sândalo e incenso o poente... cai a noite. Que belo! Um doce aroma exala das veredas, enchendo de perfume o meu caminho, e um naipe de pavões lilases revoam sobre o castelo. Meus lírios, meu tule cor-de-rosa, meu mundo irreal nos buquês recendem aos teus carinhos... As cores estão nas rosas e nos vôos lilases sobre o crepúsculo que termina. O céu agora se reveste da lua nova e nos arrulhos dos pavões vestidos com a seda pura da China.
Diante do sentimento telúrico dos baianos, Sosígenes foi único e verdadeiro em estranheza e refinamento. Justamente na estranheza do seu refinamento é que ele nos impregna do luxo clássico com seus pavões, seus lilases, mirra, azul e brônzeo canelado, ao plasmar toda a sua inventividade, numa ordem de importantes movimentos.
É o grande simbolista do modernismo que jamais se apartou do parnaso. Belmontino de nascimento, o poeta embebeu-se de Alberto, Correia e Bilac, para inserir-se leve, elegante, extremamente revelador e, ao mesmo tempo, arrojado, ao crivar um verbo próprio e inconfundível ao seu cancioneiro.
“Teu beijo, como um pássaro, me trouxe o mais azul de todos os delírios. No vinho me embriago e esqueço a tua face pra esquecer os martírios. Por tua causa o meu jardim fechou-se às mulheres que vinham buscar lírios, quando o poente cor-de-rosa e doce punha pavões nos capitéis assírios”.
Sosígenes cultivava o preciosismo e a beleza da linguagem para transformar imagens em êxtase de cores e movimentos. Pouco conhecido, mas, por esses poucos, reconhecido pela inventividade capaz de manter acesa a sua arte, de manter-se aceso e iluminado pelos candelabros raros e pelas raras belezas do Oriente que lhe marcaram a trilha, traço e a intuição, no jeito inigualável de fiar a poética em redondilhas.
Essas características estão presentes em seu livro, Poesia completa, o único trabalho literário seu publicado em vida. Poesia completa reúne em um só volume toda a sua produção poética. Obra de extremo apuro, que descortina o lapidador, um homem que entendia ser a poesia um sinal da sua percepção de mundo real/imaginário e do mundo fantástico/imaginado. À primeira vista, esse lapidador mostra-se sem a medida clara da versificação, contudo, não é na versificação que o leitor deva buscar a vitalidade da sua maneira de ver o mundo, mas, sobretudo, no preciosismo com que experimentava palavras para construir o seu campo imagético. A sua vitalidade está também no rigor da sua composição permeada de simbologias, na musicalidade das suas construções e no sagrado sentimento do belo, do pulsar de suas viagens aos cantares bíblicos, e das insígnias salomônicas de suas paráfrases.
Imaginamos Sosígenes, sentado, olhando os barcos chegando a Belmonte, vindo das Arábias e das Antilhas; o imaginamos, poeta, espalhando, além dos marcos, açafrão, anis e bilhas; um homem especial, superior, que odiava os charcos, que passeava pelo cais ignorando as cochinilhas; que andou pelo palácio de Herodes, namorou Salomé, passou pelos arcos para chegar ao mar da China, e que de lá voltou sobrecarregado de seda e porcelana, de laca e lótus e de veludo vestido; uma imagem imortalizada, no andor do sol, pelos reis do aroma e que, para a glória humana, se tornou esclarecido.
Quem chega a contemplar o seu mar de palavras e imagens, se perde numa visão de sonhos, absorto com os seus pavões dourados ao abrir leques de pedrarias; quem chega para contemplar o seu mar de palavras e imagens, caminha sobre as águas, entre as naus azuis que, singrando o mar da china, sob estrelas nuas, vê dragões de ouro voando com as garças róseas sobre os crepúsculos lilases dos céus de suas ruas.
Quem chega ao mar de cisnes prateados, desliza sob as castanheiras nas ruas de chuva, para quando vir a noite apagar o sol atrás da Piedade, e acender o teu nome, Sosígenes, no lago encantado com a luz da lua.
Sosígenes deixou transparecer, através de lugares impressionantes e belos, traduzido por suas palavras, que a sua natureza não conhecera outra ordem no mundo senão a dos requintes palacianos e da nobreza oriental; daí a pureza elegante com que criou os seus versos e o seu itinerário poético povoado de mitos e símbolos da realeza.
Por onde passou, foi um rei asceta, de céus, de plantas e de água deslumbrado; um moço de fino trato, que em “Maio”, escreveu ao seu platônico amado nascido nas colinas, a quem acariciou as mãos de pomba cristalina; um ângelus cigano, cândido, de sorriso melódico e sincopado; irmão das doces bailarinas, Orfeu, camafeu, filho das rosas, seu único amado. “Dorme a loucura em ânfora de vinho e a ilusão está dentro deste poço. Castiga, sim, mas de um modo que não seja mesquinho. Só a loucura me faz fugir desse vinho e mirar no espelho os teus olhos de moço... Orfeu, camafeu, filhos das rosas de maio, nascido anjinho...”
Se fosse possível escolher entre todos os símbolos e imagens por ele celebrados, o que seria? O carro de chuva nos pôres-do-sol? Um rei misterioso, assírio, Herodes ou Zumbi? Um pavão triste que vagou por estranha sina? Um anjo que embriagou na tarde ao pé do belo monte? Talvez a natureza escolhesse aquele Orfeu misterioso, que viajou por ricos jardins de ilusão no horizonte, em cidades de cores, flores e aromas, de sépia, topázio e turmalina.
Sosígenes, as prostitutas continuam no poente olhando as rosas e adorando as aves! Continuam as naves chegando, orgulhosas, humilhando suas almas doridas, suaves, com suas chamas ardentes. Tais naves são nuvens no ocaso depurando o cristal feminino, cujos contornos são derramados aos nossos pés, nas lágrimas de um olho peregrino.
Tu, que fostes um dragão em mar de cravos e sereias, poeta a deitar mais alto o verso nobre e eterno... Poeta! Os teus sais da Grécia vêm do fundo mar ou vêm do inferno? E o teu dourado terno de lírios e pavões são capitéis brilhando na noite ou são dragões das luas cheias?
Sosígenes, acima de tudo foi poeta, desnudo do manto da tarde incendiado; cingido de aroma, arrebatou auroras e se deteve em ninhos de perfumes; se aninhou, pássaro sagrado, saciou-se com virgens e flores e vinhos e cores, símbolos, objetos, feito imagens e palavras com que trabalhou e tão bem soube utilizá-las, escravizá-las, torná-las pedrarias com as quais seria imortalizado.
Carlos Kahê

MIGUEL TORGA: 100 ANOS NA HUMANIDADE

"Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum estatuto. Não é um dote, é um Dom".

Liberdade para o Menino do Cavaquinho

Nascido em São Martinho do Anta, na Região de Trás-os-Montes, em 12 de agosto de 1907, o médico Adolfo Correia da Rocha escondeu-se atrás do pseudônimo, Miguel Torga, para deixar fluir a sua vocação de escritor.

Sustentado por dois pólos de tensão, a mundividência do escritor tenta se equilibrar na paisagem do "eu", na qual parece derramar todos os transes humanos, e se processa, também, através do telurismo e do humanismo, que se constituem em molas-mestras de sua cosmovisão.

O gênio artístico, porém, que demonstrava ter pressa ou resistência à orientação de movimentos, impulsiona-o à dualidade – sujeito e objeto –, uma tendência literária, dentro das suas características. Tal impulso moveu o ficcionista a transformar enredo em fábulas ou parábolas, cujo objetivo era somente a moralidade, jamais o belo ou a estética; aliás, esse seu estilo de colocar o homem no centro do universo, qualificou a sua obra, diante da crítica, como polêmica, agressiva ou humanisticamente desesperada.

Torga optou por não seguir um movimento batizado em Portugal com o nome de Presença, onde repousava a fina flor literária de então, para não seguir um psicologismo para ele conflitante, pois que tratava, estritamente, a excelência urbana. Preferiu libertar-se dos neo-realistas e deixou fluir a sua literatura eivada de tragédias, da inexorabilidade dos destinos, da fatalidade e sujeição de suas personagens.
Em sua obra, os momentos de humor são raros. O seu trabalho foi orientado por quatro axiomas:

A VONTADE – inacessível e soberana de realizações impossíveis;

A VIDA – por vezes restrita a uma expectação sufocante do aniquilamento;

A MORTE – onde a vida se desenvolve em uma anti-sala do juízo final, e

O NADA – que preside o espetáculo e confere graça ao sentido que simboliza.
A literatura, em Miguel Torga, trata-se de uma comoção represada, mas nem por isso menos densa e contagiante, que emerge das pinceladas soltas que se aglutinam na unidade da própria comoção.

Ele, também, foi uma voz troante, no Portugal Salazarista: “Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que durante macerados cinqüenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com as baionetas o poder à Tirania. Quem poderá esquecê-lo. Ao se festejar o seu centenário, colhemos do Sr. Ventura e do Menino de O Cavaquinho, a senha máxima para o ser livre que nele habitou: Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum estatuto. Não é um dote, é um Dom.
Carlos Kahê

MEMÓRIAS DE LÁZARO

De acordo com alguns críticos, esta é uma história que poderia ser um documentário acerca da passagem do ser humano pela terra: nascimento, sofrimento e ressurreição.

A história, narrada por Alexandre, seu personagem central, flui de sua memória, enaltecendo a mata – admiração de sua infância –, condicionando essa memória fotográfica a uma metáfora, uma ilusão que se configura dentro da narrativa: uma visão única de mundo. Eis o nascimento.

O sofrimento vem marcado, ao denunciar, estarrecido, as maldades, sem fim, das pessoas que habitavam o vale: mas estas serão analisadas sempre em desvantagem de significado humano, em relação aos cavalos selvagens. A ressurreição, apresenta-se na ação de sair do lugar, o que acena como prenuncio de libertação daquele povo ali enterrado, mesmo antes da morte física.
Esta era a realidade possível, de Alexandre, demarcada pelo autor, cuja obra inicia o modelo literário do viés sinistro, macabro, que ainda tomaria lugar mais acentuado na literatura.

A narrativa desenvolve-se em dois planos distintos que caminham, paralelamente, ao longo de sua história, até a morte de Alexandre. No plano 1 o autor se encarrega dos fatos tidos como presentes, demonstrados pelas pequenas introduções aos capítulos ou partes: é um plano breve, de nuances, dentro do tempo histórico, porém suficiente para que Alexandre, ao sair da casa de Natanael, após o nascimento da criança deformada, seja vitimado por um ataque de demência; ela mergulha em um ataque agônico e ferido, o que o faz com que le não mais reconheça a estrada do vale, tão familiar.

Doente, ele espera pela morte, narrando, amiúde, cada um dos seus momentos vividos ali; sabendo que a sua alucinação, representada na figura de Jerônimo, jamais o levará de volta ao pesadelo, ao tormento. Volta-se ao lugar maravilhoso, concebido por Abílio, o seu pai, e isto é o que vai apoderar-se da sua visão.
O plano 2 - é o da retórica, ou seja, o plano da própria trama. Nele, os elementos da ficção, os recursos retóricos (personagens, ação, ambiente, tempo) obedecem a dois climas emocionais bem diversos, da bipolaridade: o da loucura e o da lucidez.
O autor usou de simbologia para compor o seu romance: – Nas ações que se desenvolvem no vale, o mundo exterior é o símbolo do mundo interior, da alma de Alexandre; – De uma forma ilógica, em um cenário fantasmagórico, pessoas, animais e a própria natureza se movimentam. O vale é o fórum da maldade; naquele lugar, o autor deixa os personagens agirem de maneira sórdida, como os humanos tratam as causas humanas; a escala de valores encontra-se em perfeito descalibre, permitindo toda sorte de inferências humanas, como roubo, estupro e traição.

O chocante é que o universo onde transcorrem todas aquelas alegorias malfazejas, restringe-se ao quotidiano do Vale do Ouro. Ali, não há igrejas, não há escolas, não há jardins e ninguém sorri.
A simbologia, além da linguagem está impregnada nos lugares como:
Observando a natureza física – o Vale – um lugar cercado de montanhas, que remete o leitor a cadeias, muralhas, se configura numa prisão, embora o narrador as descreva, como muros de proteção aos habitantes, colocando-os a salvo dos perigos externos. Quando Adonias coloca na narrativa “nós, os seus mortos” ele está criando a idéia de um cemitério de mortos-vivos.

Para Erich Fromm, o raciocínio leva a entender o vale como uma obsessão, uma loucura que isola o ser humano dos seus semelhantes. A atmosfera do lugar é de sedução, fascinação exercida por dotes naturais ou por artifícios, por trama ou maquinação de seu personagens.
A estrada representa a própria vida do vale: ela é colocada dentro da narrativa como o seu principal símbolo. Muitas vezes ela se mostra cheias de possibilidades, aos olhos de quem ali vive, alimentando-os como sendo ela (a estrada), o espaço de idealizações; todavia, quando ela se apresenta longe do foco da personagem, ela é utópica.
O vento – Na voz de Alexandre, é o Demônio vivo, pois que açoita o vale. Crestando tudo, traz o desassossego e obriga os seus moradores a viverem isolados do seu próprio habitat, devido ao regime de vida, obrigando-os a viverem de janelas fechadas, uma condição arbitrária, imposta por ele – o vento.
A água é símbolo de movimento, ciclo de vida e de paz, a sua ausência é certeza de morte, de falência do Vale do Ouro. Os poços, os córregos e ribeiros são o que possibilitam a existência das árvores gigantescas, de negras copas, prenhes de vida. Quando seus córregos secaram-se, e receberam, no lugar da água, a camada de lodo, as serpentes encontraram no lugar, a associação própria à degradação do vale. A presença do lodo e das serpentes, portanto, simbolizam as maldades latentes que ali encontraram paragem.
Trovões e nuvens negras significavam terror, medo do desconhecido, representavam os perigos que ameaçavam desabar sobre as desesperanças reinantes. Enquanto pairavam acima, nos céus, aquelas nuvens tinham a eficácia de uma avaliação, por parte dos deuses algozes, prendendo aquelas vidas, ao vale, eternamente. “Ergue-se novamente dentro de mim, a sensibilidade antiga, uma espécie de música sem ritmo, subjugando o vento.”
Alexandre, o personagem principal, foi retratado pela articulista do “Estadão”, Maria S. Brito, quando do lançamento da 2a edição de MEMORIAS DE LÁZARO, no Suplemento Literário, de 23 de maio de 1970, como aquele que centraliza-se em uma obra, cujo enredo “ apresenta uma história de queda, ressurreição e morte”; Costa Lima acrescenta ao perfil da personagem, como adendo àquela concepção, ao nosso modo de ver, a desnecessária ressurreição para a vida espiritual. No que concerne à queda, enfocada pelo jornal paulista, a vida de um ser humano vem como ondas: alterna-se em altas e baixas, às vezes rasteja-se pela areia e muitas vezes explode nos ares.

Como representante de uma legião pertinente ao vale, Alexandre luta à procura da redenção; como as saídas se apresentam em círculos, íngremes, sem veredas, circundantes, dificultam qualquer fuga, daquele caos. O personagem logra saída através do braço da floresta, réstia de luz salvadora, que ludibria a segurança do vale. Recobrado de sua loucura, ele retoma a sua infância: retorna aos 4 anos de idade, quando rasgava, encantado, a sua floresta, levado pelo braço de Jerônimo. Para quem, no mais das vezes, viveu mergulhado em seu estado alucinógeno, o braço da floresta simboliza os fortuitos momentos de lucidez de Alexandre.
Entendemos a ressurreição dessa personagem, como única, em qualquer plano; era no justo momento de lucidez quando ele encontrava-se levitado. Lutou, como um condenado, quando foi viver na vila de Coaraci, para manter-se a salvo dos diabinhos que o empurravam para o lodaçal. Apesar do seu esforço, os maus-espíritos o dominavam e o levavam de volta ao vale. Nesse seu retorno, porém, a estrada já não é a mesma, nem sequer o vale. Alexandre quer buscar no passado, fatos, pessoas ainda presas às sombras tenebrosas da terra, querendo vir buscá-lo, para libertá-lo, o que só o consegue através da morte: “Ocultam-se, num corte fulminante, o vale e o vento. Tudo se vai fechando, aos poucos, com serenidade e imensa quietude”.

Jerônimo – Se Alexandre é a personagem principal, Jerônimo é mais fascinante. Jamais saiu do vale. Surgiu com Abílio, depois, abandonado por este, levou Alexandre, menino ainda, para a solidão da sua caverna, no interior da rocha. Jerônimo existiu ou representou apenas o lado enfermo da personalidade de Alexandre? Ele era aquele caráter violento, que habitava a caverna, ou era somente a demência que Alexandre herdara de Abílio. O certo é que Jerônimo transferiu para Alexandre, claros antecedentes de loucura de Abílio, os quais permaneceram como entraves, que o impediu de libertar-se das amarras da alienação e do crime: “Como se o vento do vale soprasse nos meus ouvidos, e, no próprio vale eu estivesse a andar na grande estrada, senti nos ombros, pesadas e agressivas, as mãos de Jerônimo (...) a imagem de Jerônimo chamava-me aos berros, como um enfeitiçado... “
Nos instantes finais, quando Abílio reaparece para mostrar ao filho a estrada longa da redenção, Alexandre vê-se preocupado, com a possível chegada de Jerônimo, para censurá-lo. “Venha a luz, com a manhã (...) pois eu sei que Jerônimo chegará muito mais tarde”.
O tempo pode ser dividido sob duas formas: – cronológico ou histórico, e psicológico ou
metafísico.
O tempo cronológico é marcado pelo ritmo do relógio; pela alternância da noite e do dia, pelo movimento das marés, pelas estações do ano, e até pelo movimento do sol. Quanto ao tempo interior, é o tempo psicológico de que falamos; é o tempo imerso no labirinto mental de cada um: cronometrado pelas sensações, idéias, pensamentos, vivências, sem idade ou razão. Tudo o quanto sentimos, ficou acumulado num espaço sem limites, quando muito, circular. Nneste processo, as sensações vão-se acumulando, sem cronologia.
Onde tem lugar a ação, Adonias Filho utiliza esse elemento perfeitamente sincronizado; quando dispõe desse artifício, chega a esquecer as personagens, o próprio tempo marcado pelas horas, envolvido que está no tormentoso tempo psicológico de Alexandre: este, submerso no interior das brumas de suas doentias lembranças. As referências ao tempo histórico só servem para marcar mais fundo a agonia e a desesperança dos seres que vegetam naquele ambiente povoado de fantasmas.
No ambiente/vale, inexistindo a noção de tempo histórico, não há conexão entre os elementos temporais, tampouco, interesse em se precisar tempo objetivo ou cronológico. Conta, no todo, as paixões em jogo, os conflitos e as lutas que travam seus personagens contra a solidão, os demônios e a falta de perspectivas. Nos momentos de lucidez, porém, o tempo cronológico se faz presente, por exemplo, na aldeia de Coaraci, quando Alexandre vai estar com Terto, ou quando esteve com Natanael. Esses são momentos tranqüilos, apenas cortados por alucinações provocadas pelos maus tratos, cuja passagem devolve a Alexandre a fraqueza, somente experimentada, quando este se encontra no Vale do Ouro.
Tratando o tempo dessa maneira, Adonias passa a construir os episódios em outro estilo: de maneira mais clara, mais direta, coadunando conceito de tempo histórico, de acordo com as ações reais dos personagens; uma prova disto é o momento em que Alexandre, ao reencontrar-se com Terto, dorme, acorda, passa a acompanhar o desenrolar do dia, marcando-o, pelo compasso das horas.
Ao adotar-se o tempo cronológico, o romance passa a desenvolver-se em um cenário mais concreto; sem os efeitos da natureza, abre-se espaço para o aparecimento de figuras como o governo, índios... até o coletor de impostos: “há dois ou três anos, estas terras eram do governo. Daqui para a aldeia, leva-se oito dias de viagem. Chegaremos dentro de poucas horas. Permaneci, morando naquela casa, durante muito tempo. Dois anos ou mais...” – Alexandre, recobrando-se, mostra-se capaz de apontar o tempo decorrido, desde a sua chegada àquela aldeia, algo impossível nos tempos do vale.
Mais uma vez, o autor volta a envolver-se com os temas de sua preferência: o isolamento em que vive o ser humano, uma condição cada vez mais contundente, em determinadas camadas da sociedade, além da carência de afeto, que advêm dessa solidão.

Inconsciente, talvez, Adonias critica também o primarismo nos imposto, pela Coroa Portuguesa, ao longo de séculos, desde o Descobrimento à instalação da Primeira República. Ainda que discorra em ambientes menos densos de mistério e tragédia, os seus personagens, sempre ricos de substância dramática, vão deixar transparecer a necessidade de refúgio e de isolamento.
Em Memórias de Lázaro, Adonias tenta criar, obstinadamente, as saídas para os nossos conflitos, embora se utilize de recursos sinistros para dar vida às suas personagens, e às tramas com que elas se vêem envolvidas. Traz a desesperança, porém busca encontrar uma forma de protegê-los, em seus espaços mágicos, locais em que eles se refugiam. Em suma, Adonias, parece escrever certo, embora seja por linhas tortas que ele vai encontrar o caminho para guiar o seu povo até a Canaã idealizada.
Carlos Kahê

domingo, 13 de janeiro de 2008

RUDYARD KIPLING

LISPETH

Em Lispeth, conto de Rudyard Kliping, a personagem é uma garota, filha de montanheses do Himalaia, Sonoo e Jadeh, que foi retirada da sua realidade de aldeã primitiva, do Sutlej Valley, em Kotgarh, na Índia, para ser colocada no seio de uma família inglesa.
Quem lê o trabalho desse escritor indiano, criado nos ares britânicos, não há como fingir que suas palavras não nos levam ao desencanto. Kipling descreve a desilusão daquela jovem, como se estivesse convencendo-a de que a sua estada naquela casa, não tem a devida aceitação, como uma filha de verdade, por parte desses supostos pais: na verdade ela nos é mostrada como uma espécie de empregada, de acompanhante da esposa do capelão, jamais como filha.
A desilusão de Lispeth se acentua ao encontrar aquele moço branco, ferido: ela o acolhe em casa, cuida dele, imaginando ter encontrado naquele homem civilizado o companheiro ideal, o amor de sua vida.
O ser humano vive impulsionado pelos seus sonhos. É verdade. Todavia, se a sua capacidade de sonhar superar os seus próprios limites? E se a sua capacidade de sonhar suplantar a possibilidade de idealizar os seus desejos? O que faz ele? Ultrapassar a linha invisível da racionalidade? Vivendo assim, ele estará vivendo os seus embates com o ilusório: simplesmente, a sua capacidade de sonhar abriu-lhe perspectivas falsas. O que faz o sujeito? Perde a sua esperança?
Ao ouvir de Lispeth, a intenção de desposar aquele desconhecido, os seus supostos pais se manifestaram com horror; não por ser o pretendido um desconhecido: ele era um jovem inglês, possivelmente oriundo de uma casta nobre, portanto, acima das possibilidades de uma aldeã. O capelão e sua esposa manifestaram-se com horror diante daquela pretensão, porque eles jamais a tiveram como filha, embora fosse muito bonita: descrita por Kipling, Lispeth era uma deusa grega, com traços europeus.
Dessa forma, Lispeth deixava-se embaraçar na teia ilusória das diferenças; tornava-se personagem nefasta em um confronto cultural, tragada pelo abismo social, pelo desnível econômico existente entre um vale situado no sopé de uma montanha asiática e a paradigmática Inglaterra, do Reino Unido.
O conto de Kipling, em nossa visão terceiromundista, denota o preconceito dos povos dominantes em relação as suas colônias. Além do fator econômico e político, existem as carências sociológicas: o capelão e sua esposa jamais fariam uma leitura de impossibilidade, se fosse outra a origem da menina. Depois daquele desejo manifestado, eles jamais teriam se juntado ao inglês para iludir a aldeã com vãs promessas de que ele voltaria para desposá-la, se não houvesse esse viés seletivo.
Sentindo que perdera a batalha inglória das diferenças, Lispeth resolve anunciar aos supostos pais, sem recorrer às palavras, que entendera o tamanho do seu papel naquela história. Ela escolhe voltar ao seu lugar. Estava sucumbida diante da inexorável desilusão, depois de entender que a sua triste realidade seria a de retornar às intempéries sazonais das lavouras de milho; seria voltar a viver a sua própria realidade, de retomar o seu ópio existencial, viver perdida nos campos de papoulas, em seu vale, no seio da sua verdadeira casta.
Trazendo à luz essa realidade humana, Kipling demonstra a sua preocupação com as minorias; extratos cruéis de realidades que, embora distante, mudam apenas a forma de se discriminar, todavia é mais uma oportunidade que a literatura tem de nos revelar que é a partir de obras como essa, que o mundo encontra a forma mais pertinaz de aproximação, não obstante as aberrações sustentadas pelas sociedades dominantes sobre as castas colonizadas.
Carlos Kahê

EDGAR ALLAN POE

O GENIO EM DESEQUILIBRIO
Aspecto: O Psicológico.

É quase impossível refletir sobre a obra de Edgar Allan Poe sem cair na tentação de traçar paralelos entre o seu fazer literário e a sua tão decantada personalidade, uma vez que sabemos serem as nossas atitudes resultante daquilo que somos. Em literatura, mais do em qualquer outra arte, as possibilidades de nos revelarmos ou de multifacetarmos, de aglutinarmos ou nos colocarmos justapostos, em relação às performances das personagens e temas que criamos, se manifesta com mais rigor e obstinação. Em Poe não poderia ser diferente.
A obra de Poe, enquanto complexa é, surpreendente, quer pela forte relação que ela mantém com o que conhecemos da sua personalidade ou pelo aspecto extraordinário explícito na razão direta do seu caráter: dizem ter coexistido, em Poe, duas pessoas: uma gentil, afetuosa, devotada, e outra arrogante, rebelde, egoísta e de difícil relação.
Segundo a crítica especializada, essas alternâncias de caráter estão claramente manifestas em sua obra: são elementos importantes que dão profundidade e intensidade; em alguns momentos, deixam emergir todo o seu esplendor de vida; noutros, o que ressalta é o seu alterego melancólico, no tratar com imagens e palavras. Transcrevemos, a seguir, alguns trechos do conto “The Black Cat”, em cujas passagens poderemos nos acercar do seu lado gentil: “Desde a infância observaram minha docilidade e a humanidade do meu caráter. A ternura do meu coração era de fato tão conspícua que me tornara alvo dos gracejos dos meus companheiros” (...) “Passava a maior parte do tempo com eles (os animais) e os meus momentos mais felizes transcorriam quando os alimentava e os acariciava”. (...) Casei-me cedo e tive a felicidade de encontrar em minha esposa uma disposição que não era diferente da minha.“
Não obstante a doçura e suas colocações, a violência, o funesto, a fatalidade e o sobrenatural, bem como a vida e a morte, são tratados com o mesmo tom, dentro da sua estrutura psicológica, muitas vezes entrelaçando-se, sem que os elementos reais e imaginários interfiram na sua acuidade e em seu raciocínio. O tom com que Edgar Allan Poe convida o leitor a penetrar em seu mundo imaginário é feito sem violência; é como colocar os pés num turbilhão, devido à solenidade surpreendente, embora o espírito se mantenha em estado pleno de alerta.
Quando, porém, solicita o seu lado funesto, suprime os sentimentos acessórios e, lentamente, introduz a história com outra forma de olhar o mundo, e sem que se perceba, encaminha o leitor a um trabalho de profundo desvio do intelecto, sobre algo fora da ordem, que ele tenciona defender como tese de boa safra: “A fúria de um demônio possuiu-me instantaneamente... Minha alma original parecia ter fugido imediatamente do meu corpo, e uma malevolência, mais do que satânica, assumiu o controle de cada fibra do meu corpo... Tirei o canivete do bolso do meu colete, abri a lâmina, agarrei a pobre besta pela garganta e deliberadamente arranquei a órbita do seu olho”. (The Black Cat)
Edgar Allan Poe quebrou os parâmetros literários, ao introduzir as exceções humanas e naturais. Em Poe, os ardores dos relacionamentos rumorosos abriram lugar às dúvidas e ao absurdo, insinuando-se diante dos equilíbrios; sobretudo, dominou o calmo pensar com uma lógica espantosa para um fundamento imaginário. Em sua obra, o irracional domina o racional, as vontades se estabelecem dentro de controles, e o céptico torna-se rarefeito diante do histérico: e a dor e o riso se aliam para se justificarem. “Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza de meu caráter não haveis de supor, no entanto, que eu tenha proferido qualquer ameaça: (...) Introduzi uma vela pelo orifício que restava e deixei-a cair dentro do nicho. Senti chegar até mim, como resposta, apenas um tilintar de guizos. Senti o coração opresso, sem dúvida devido à umidade das catacumbas. Apressei-me para terminar o meu trabalho. Com esforço, coloquei em seu lugar a última pedra ¾ e cobri-a com uma argamassa. De encontro à nova parede, tornei a erguer a antiga muralha de ossos. Durante meio século, mortal algum perturbou. Que descanse em paz! (The Cask of Amontillado).

A força propulsora de Poe é a palavra. Nela, o tempo e o ambiente se definham diante das narrativas febris com que tenta realçar os seus enredos. Lemos em algum lugar, algo sobre ele esquivar-se de tratar das paixões, haja vista as suas personagens serem, normalmente, homens de faculdades agudas, frios, cuja vontade ardente e paciente era lançar desafios às dificuldades; os olhares dos homens, criados por Poe, estiveram sempre ajustados com a rigidez de uma espada sobre objetos, que cresceram à medida que ele os contemplava. Ou seja, Poe é ator e mártir de sua própria obra.
Quanto às mulheres, apesar de trazerem certa luminosidade, apresentam-se sombrias, doentes, acometidas de estranhos males e deles vão morrer. Se não reportam ao seu mais íntimo pensar, retratam as que marcaram a vida do escritor, uma vez que insurgem contraindo aspirações estranhas, melancolias incuráveis que não desfazem o forte conceito de quem o observa, mais profundamente, de atrelá-las à sua personalidade: “Erguendo um machado esquecido em minha cólera do medo infantil que até então me impedira de levantar um dedo contra o gato, dirigi um golpe ao animal que, sem a menor dúvida, teria sido fatal se tivesse acertado onde queria. Porém a machadada foi impedida pela mão de minha esposa a segurar-me o braço de seu aperto e, com um único golpe, enterrei o machado na cabeça dela. Ela caiu morta no mesmo lugar, sem soltar um gemido. Tendo cometido esse assassinato pavoroso, imediatamente, sem remorsos e de maneira mais deliberada possível, voltei-me para a tarefa de esconder o corpo”. (The Black Cat)
Portanto, como afirmamos antes, a obra de Poe é complexa e surpreendente pela forte relação que mantém com o que conhecemos das suas estranhas unidades. Para um psicólogo, que estuda uma faculdade variável, móvel, diversa, como a imaginação, vai encontrar nessas suas ambigüidades o aspecto extraordinário que está mitificado em sua história de homem que, embora reconhecidamente um gênio de imaginação erradia e ambiciosa, não conseguiu expressar-se de forma a omitir essa sua dualidade doentia.

Carlos Kahê

sábado, 12 de janeiro de 2008

O DESPERTAR DA INTELECTUALIDADE


DESPERTAR DA INTELECTUALIDADE: ENGAJAMENTO E CONTRACULTURA
No final do século XIX, intelectuais como Machado de Assis, José de Alencar, entre outros, engendraram esforços no sentido de se criar um programa voltado à construção de uma Identidade Nacional, a almejada “cor local”, que seria a formação de uma cultura própria desvinculada de Portugal e de outros centros inspiradores.
Anos mais tarde, A Semana de Arte Moderna, de 1922, retomou a concepção organizacional do pensamento, no Brasil. Se nada de novo apresentou durante o evento realizado no teatro Municipal de São Paulo, levou a intelectualidade brasileira à reflexão quanto à sua própria produção e os seus compromissos com o pensamento social. Os cabeças do movimento paulista, Mario, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, utilizaram como mote de suas reivindicações rechaçar qualquer influência externa. Suas inquietações denotavam a perplexidade diante do marasmo econômico que se operava em nossa sociedade, essencialmente agrícola, enquanto que as civilizações que lhe serviam de modelo consolidavam-se como sociedades industriais.
No ensaio, Debates intelectuais dos anos 1950, 1960 e 1970: engajamento e contracultura, escrito por Mariza Veloso, ela faz uma excelente abordagem sobre este despertar, a partir do período pós guerra, época em que a modernização brasileira acontece. A produção industrial, embora incipiente, dá os seus primeiros passos; valores estéticos de vanguardas se estabelecem, como se estabelecem os parâmetros culturais que vão gerar os movimentos concretistas, construtivistas e a nova linguagem cinematográfica proposta pelo Cinema Novo: sua visão aguda sobre as contradições da realidade brasileira, embora de forma crua, sem apontar possíveis idealizações tanto do Brasil, quanto da América Latina. Na literatura, há que assinalar Guimarães Rosa e Clarice Lispector e seus feitos criativos no plano da linguagem; a visão estética do mundo e posturas diante daquilo que consideravam realmente moderno.
Mariza Veloso enfatiza o pensamento social de Caio Prado Junior, em cuja obra, Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, o intelectual paulista lança olhares sobre a historiografia tradicional: monocultura, latifúndio e escravidão, utilizando a perspectiva marxista para explicar a inserção subalterna do Brasil no sistema capitalista, o que leva Celso Furtado a inserir a economia no contexto sócio-histórico e na produção e reprodução das relações sociais.
Nas décadas de 1940 e 1950, as ciências sociais consolidam-se nos mais adiantados centros acadêmicos, a exemplo da USP, que adota critérios no sentido de dar autonomia à pesquisa acadêmica e à universidade diante de outras instâncias de poder. Outro centro importante, o ISEB, do Rio de Janeiro, reuniu grupos de cientistas sociais com a proposta de elaborar um modelo de desenvolvimento para a sociedade brasileira pensar na possibilidade de se criar uma nova Capital Federal. A nova capital seria fundada no cerne do seu imenso território, com fins de aproximar o Poder Econômico do seu povo. As reuniões do ISEB, também, tinham em pauta, formular uma nova modalidade de nacionalismo, baseado no planejamento racional e a necessidade de explicitar o sentimento das massas populares: um tipo de ideal desenvolvimentista, entendido como possibilidade de inserção autônoma do país no sistema capitalista internacional.
Na década de 1940 foi criada a Campanha Nacional do Folclore, inspirada pelo Ministério das Relações Exteriores, que visava a recolher e documentar as manifestações da cultura tradicional. Criou-se a Carta Folclórica que orientava os intelectuais em seus congressos, pesquisas e atividades. O objetivo era valorizar a autenticidade da manifestação folclórica, pois que se acreditava estar ali a tão propalada “Identidade Nacional”, que ainda movia a intelectualidade. No entanto, a partir dos anos 60, encontrando nas manifestações populares uma dinâmica cultural aguçada capaz de propiciar uma nova comunicação entre as massas, os intelectuais não mais reconhecem nas tradições do povo, o folclore; doravante tais manifestações passam a ser chamadas de“cultura popular”.
A crise mundial chegara ao seu ápice, motivada pelo assassinato do presidente Kennedy, pela ocupação União Soviética nos países da Cortina de Ferro, a Guerra do Vietnã... A grande revolução de costumes provocava uma crise de valores expressa nos movimentos da juventude, em nível mundial. Evidentemente, em cada país esses movimentos assumiam um caráter específico, evidenciando, assim, contradições próprias de acordo com a realidade de cada um.
No Brasil, com o advento do golpe militar, instalaram-se controles rígidos nas produções culturais, o que ocasionou rupturas generalizadas e transformações profundas no campo intelectual. Ao ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e à UNE (União Nacional dos Estudantes) vincularam-se os Centros Populares de Cultura, criados com a finalidade de desenvolver a consciência das massas por meio das artes. Esses “centros” acenavam para as camadas mais populares com uma produção cultural altamente engajada: sua função primeira seria emancipar politicamente o povo e aproximá-lo dos artistas de massas. Considerando tudo aquilo uma metáfora, os Militares vislumbrou naquele evento uma forma estratégica encontrada pelos intelectuais de deslocar as massas para posições mais revolucionárias, mais à esquerda do imaginável. Foi o último estertor utópico e libertário. As vozes se calariam, definitivamente, na década seguinte.
Poucos órgãos, revistas e jornais criaram resistência ao novo regime. A indústria cultural se consolida, misturada à cultura popular internacional, absorvida sistematicamente. A televisão é alçada ao topo das comunicações de massas, toma a direção dos novos costumes, todavia, altamente controlada pela censura, limita-se ao que era idealizado pelo sistema: sempre com a visão otimista do país, a partir de uma cartilha oficial receitada.
Até a promulgação do AI-5, em 1968, a cultura crítica e irreverente ainda tentou manter em alta a hegemonia das esquerdas: demonstravam audácia e criatividade em resposta ao horror que já se apregoava nas ruas e nos pátios das universidades. Inúmeros são os exemplos de atrocidades que agraciaram verdadeiros líderes com o exílio.
De acordo com Mariza Veloso, ao se preconizar a necessidade de uma arte e de uma cultura engajadas e de denúncia social, há que se ressaltar as idéias inspiradas sob a égide do Tropicalismo, pois que ali estão formuladas as narrativas mais expressivas e as imagens mais contundentes.
O poeta francês, Mallarmé, dizia que os poetas são aqueles que purificam as palavras da tribo, todavia o que fazer com esses poetas quando a repressão restringe-os ao vazio? Os anos 70, para a arte-engajada, representam esse vazio: sem ideologias unificadoras e sem manifestos. O resultado é uma produção cultural desigual e dispersa; do novo passa-se ao marginal e deste ao inexprimível popular, ou seja, a cultura amparada pelo capital oficial, denominada popular se contrapõe à cultura marginal e esta se insere no contexto como contracultura: a poesia passada de mão em mão e a música de protesto são as vozes que expressam os dilemas vividos pela sociedade. Surge o fenômeno “pop” uma categoria que permite o livre trânsito entre as linguagens artísticas eruditas e populares.
Nas artes a diversidade traz um festival de estilos efêmeros e variáveis: vale ressaltar a “arte conceitual” em cuja produção o objetivo do artista era deslocar a atenção do objeto criado. Mudando essa postura, a expectativa recairia sobre o público; valia a análise sobre sua reação, choque e estranheza, em relação ao objeto. A proposta, além de colocar o público como experiência estética, visava a deslocar seus hábitos perceptivos. Se a diversidade e a fragmentação das tendências estéticas e científicas dificultavam a visão do conjunto e não os levava a enfatizar narrativas ou imagens que pudessem ser significativas, a arte conceitual teve o mérito de apontar para mutações significativas e instaurar uma nova lógica nas condições da produção cultural.
No seio de uma sociedade formada por um expressivo contingente da classe média, o acesso a itens de consumo postos em circulação, sobretudo de consumo cultural, encarregou-se de delimitar o status, discriminar as zonas de influências e regular as trocas simbólicas, o que inspirou, em plenos anos 80, a intensificação das experiências estéticas originais, criadas com o propósito de demonstrar o poder da cultura e da arte na renovação das práticas sociais contemporâneas. Assim, surgiram os movimentos jovens, o movimento negro, o feminista e o ambientalista. Estas transformações apenas tomam o curso da eterna globalização, pois que ainda resguarda os valores iluministas, padrões universalistas de organização política e cultural, quais sejam, as generalizações de ideais, como liberdade, igualdade, razão e progresso, molas propulsoras das narrativas fundadoras da modernidade.
Essas reflexões são importantes, porque revigoram a certeza de que somos capazes de gerar procedimentos e estratégias de superações; de buscarmos em nosso passado rituais de introjeção que nos tornem capazes de recriar novas expressões culturais. Vejamos a arte religiosa, barroca, a literatura de Machado, a música de Villa Lobos, a pintura mural de Portinari e o cinema de Glauber: exemplos significativos da capacidade de apropriação seletiva das diversas matrizes culturais, devolvidas sob forma de produtos originais. Isto significa que manifestações de vigor universais da cultura brasileira, antes de nos possibilitar a absorção e filtragem de seus ricos valores, são acervos de tradições estéticas singulares.
Para concluir, Mariza Veloso defende que é mais adequado considerar que idéias, práticas e imagens suscitem variadas relações entre si e não necessariamente imponham a predominância de um sistema de valores sobre outro. Vale focar os diferentes universos culturais a partir das noções de confluências e interlocuções que suas marcas se interpõem e se auto-influenciam: este percurso sugere uma reavaliação de cada um dos momentos, para que vejamos o passado como lições e legados para a consecução de novas utopias.
Carlos Kahê
























A CEGUEIRA, EM SARAMAGO

Ensaio Sobre a Cegueira

Ao escrever o romance, Ensaio sobre a cegueira, o escritor português, José Saramago, unificou o universo romanesco e transformou, em princípio de construção artística, uma obra articulada pelo processo social, de modo a viabilizar e a tornar inteligível a coerência e a força organizadora, como pontos de partida à reflexão: “Tudo havia sido recolhido, as coisas menores metidas dentro das coisas maiores; as mais sujas metidas dentro das menos sujas...” As palavras assim dispostas parecem uma determinação regulamentar de uma higiene racionalizada; mas ocorre que a linguagem poética possui uma densidade que a distancia das coisas, para se colocar num plano em que as correspondências são obscuras e precárias para aquele que pretendeu tudo compreender, mas que, todavia, jamais conseguiu compreender a sua essência. Assim, o papel que nos cabe é ir mais além das palavras; buscar o que está além do enunciado: “Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente como animais”.
Este é, talvez, o grande mote do romance. Esta é, talvez, a senha que Saramago utilizou para tratar as inquietações sociais generalizadas como uma metástase que impregnava todos os flancos e tomava o cerne da questão: uma doença terrível que toma um corpo de assalto, para o golpe fatal.
Enquanto obra literária, Ensaio sobre a cegueira, possibilitou a José Saramago relatar a realidade por ele vivida: “Vi o que vi, não tive outro remédio... Cada um deve falar do que sabe... Estou de passagem, e estes eram os sinais que iam deixando ao passar”. Saramago demonstra, ao ingerir-se na fala de suas criaturas, o anseio de imortalizar o quadro estarrecedor implantado em sua terra, até se insinuando como personagem de sua própria obra: “Os cegos não precisam de nome, eu sou a voz que tenho; o resto não é importante... Um escritor acaba por ter na vida a paciência de que precisou para escrever”.
A diáspora cultural acontecendo e a nação se desfazendo culturalmente, em virtude de os seus intelectuais, impelidos pela recusa ao regime totalitário, buscarem a liberdade do pensamento em outras plagas. As pessoas viviam a sonhar que eram pedras, ignorando o quanto é profundo e comprometedor o sono delas. Portugal vivia, então, sob a marca da sociedade patriarcal e machista que impunha a situação da mulher à exploração, mantendo-a oprimida e discriminada. As colônias ultramarinas revoltadas, ao verem os seus filhos sacrificados, sem sequer entenderem o sentido e a justiça de tantas guerras: "Se matava e se morria para conservar os privilégios de ricos".
Como escreveu a escritora Teolinda Gersão, "Os presos iniciam seu retorno a Portugal: entre eles, escritores, professores cientistas, intelectuais exilados, vindos dos mais diversos países... Um povo perdido pelo mundo reunindo os pedaços diversos do seu corpo. Eles retornam, pisando outra vez a terra abandonada; mas agora outra vez sua, finalmente sua, se a luta das suas mãos não afrouxar.
Lutas agrárias, diáspora cultural, estertor salazarista, extinção da Sociedade Portuguesa de Escritores, são exemplos de atentados à liberdade do cidadão; porém nada foi mais estarrecedor do que o silêncio imposto à nação. Essa mordaça, aos poucos foi minando a capacidade reacionária de cada um, seja intelectual, artística ou do próprio homem comum. Tudo o que era produzido carecia de sutileza ou enveredava-se para a marginalidade cultural, porque os raros documentos que vinham à tona eram produzidos através da linguagem cifrada, deixando entrever a fala estrangulada, a opinião engasgada na escrita sorrateira, apertada em torno das casas: a mordaça do silêncio e a sua mão castradora retiravam do povo a força da revolta.
A lama negra do medo que se abateu sobre os portugueses, os acondicionou em um refúgio de silêncio e os cegou: “O medo cega... Já éramos cegos no momento em que cegamos!" Diz a rapariga, a personagem que não se desvencilhava dos seus óculos escuros. "O medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos...” Como não se sabe qual o número preciso de cegos para se fazer uma cegueira, Saramago atira essa questão para o alto, e brinca com as palavras num jogo de inversões: “Cego é aquele que vê adiante”. O escritor português foge a estereótipos e açula os seus personagens cegos a tornarem aos seus postos de guerreiros, ao dizer que os cegos estão sempre em guerra, sempre estiveram em guerra: “Tornarás a matar, se tiver de ser... Dessa cegueira já não me livrarei!”. Não é sem propósito que o escritor planta uma mulher a conduzir o primeiro grupo que cegara: criando tal genealogia, ele faz jus à plêiade de escritoras que levantaram a voz contra o regime, enquanto os homens silenciavam.
Assim, a mulher do médico, em todo o desenrolar de sua narrativa, foi os olhos do grupo trancafiado na colônia: “Tu não estás cega, por isso tem sido a que manda e organiza... Cegos são os que mandam e os que são mandados... Sou unicamente os olhos que vocês deixaram de ter!”
A forma dominante que imperava, como está salientada no romance, comporta e incorpora a realidade acionada no campo imaginário, contudo, não se trata de um realismo espelhista, embora possa combinar elementos historicamente incaracterísticos, que o leva para o lado fabuloso. Ensaio sobre a cegueira, não pretende passar por um documento de realismo documental, mas se tornar uma manifestação representativa da sua inquietação histórica e cultural presente em suas lembranças, e marcar com clarividência a ânsia e o inconformismo dos portugueses, no justo instante em que eles abrem os olhos para a realidade:
“Entretanto nasceu a lua. Alguns dos que ali estavam já o sabiam e tinham-se calado, outros andavam desde há tempos com suspeita e agora as viam confirmadas... Inesperado foi o alheamento dos restantes (...) talvez o não devamos estranhar (...) Noutra altura a revelação teria sido causa de um enorme alvoroço, de uma comoção sem freio... Ajuda-me a sair dessa prisão!”
Como um apanhador em um campo de idéias, saímos catando as frases do autor, no intuito de ligar palavra soltas, de propósito, ao longo da narrativa, com o fim de juntá-las e concretizar o seu veredicto, nesse universal resgate.
Ao indagar o nome das gotas que se põe nos olhos, Saramago propõe o desabafo generalizado de suas personagens massacradas pelo silêncio, ao implorar: “Dá-me a direção do seu médico! Ajuda-me a sair desta prisão!” O grito de socorro, aqui tratado com muita propriedade, como uma reação dos ungidos pela cegueira branca, simboliza o fim das trevas: agora não é mais a indiferença e a alienação que assomam o instante; o povo se liberta, enfim, dos grilhões impostos pelo sistema e passa a entender como é simples o enunciado do Eclesiastes: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. O signo bíblico, utilizado como epígrafe, leva o escritor a encontrar o desígnio de sua própria narrativa, ao confirmar o que a história da humanidade tem mostrado, não raro, que coisas ruins trazem consigo coisas boas, e vice-versa, como uma forma contraditória de se tocar um mundo que se pretende paritário.
O escritor e médico, Miguel Torga, desabafa: "Golpe militar! Assim eu acreditasse nos militares. Foram eles que, durantes os últimos macerados cinqüenta anos pátrios, nos prenderam, nos censuraram, nos apreenderam e asseguraram com baionetas o poder à tirania. Quem poderá esquecê-los?
Uma grande obra literária é um acontecimento para a teoria cientificista, em função da sua relação com a sociedade se estabelecer através da fórmula entendida como um processo mediador que organiza, que não se aprofunda tanto em dados, uma vez que a linguagem moderna suscita mais a imagem do que a expressividade. Em literatura, ficção e realidade buscam os seus equilíbrios, visando a dar cunho de legitimidade à proposta de quem vai manipulá-la através das palavras. O papel do escritor é utilizar um recurso artístico para tecer as suas verdades, municiando o seu romance de sentimento com fundo de realidade; ao mesmo tempo em que vai propor uma realidade inserida de caos, sobre um fundo de romance. Todavia, para que isto aconteça, será preciso que, ao se conceber essa obra, o seu idealizador esteja imbuído do propósito estético e da crítica social. Nesse contexto, a importância de se abrir os olhos para a realidade, não obstante a ironia nos mostrar que, paradoxalmente, foi de dentro das grades, onde foram trancafiados os primeiros ditosos, de onde emergiu o caminho da liberdade. “Organizar-se já é de certa maneira começar a ter olhos!” Num átimo, meio século de trevas foi posto em colisão com o sol, ao ver proclamado o fim do mundo. Todo o passado estava morto; a multidão pisava as lembranças de tudo que representava a sua morte, sem as ver. Alguns olhos lúcidos passaram, no mesmo instante, a ligar os pontos do passado e do presente, deparando-se com uma fenda aberta que os possibilitavam registrar um recorte de opressão vivida por essa parte da humanidade. Portugal saía, enfim, da cegueira das trevas para a cegueira da luz, ao ver o sol nascer sobre uma cidade em festa, no dia da sua salvação penitencial; no dia da visão do sétimo dia, do advento do anjo, da seiva da mandrágora, da virtude do signo, da disciplina do vento, do perfume da lua... Porém, o fato mais importante, nesse renascimento, foi o próprio renascer da palavra, o resgate da lucidez e do afeto em cada um, individualmente: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que somos”.
Carlos Kahê

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

A LIRA E O ALAÚDE

Em fevereiro penso nos amigos que se espraiam sob a égide de aquário. Penso em mim e penso no Drummond. “O último dia do tempo não é o último dia de tudo. O dia do nosso aniversário não é o único dia do nosso tempo".Recebo com simplicidade este presente do acaso, buscando ser merecedor de mais um ano, mas aviso: eu não penso em esgotar a borra dos séculos...Ainda uma vez, estou vivo e de copo na mão esperando mais um amanhecer na minha existência.
Ao caminharmos na vida, as lições da infância se plenificam vertidas em palavras mais acuradas. Os desejos débeis não nos fazem falta, e quando nos completam são sempre de uma forma melancólica. Quando jovens, comportamo-nos à maneira dos cavalos livres nos grandes prados do mundo, alimentados pela seiva dos anjos. Varamos noites, mergulhamos em insípidas águas, vivemos absorvidos pela nossa epopéia e desejos carnais;bebemos de tudo, desfazemos de tudo, criamos e, das nossas criações, descuidamos. Uma noite dormida na juventude é um alicerce.Ofertas são excluídas, assim, como as possibilidades. Somos pássaros roucos, mudos, sem canto; pousamos a esmo sobre os nossos retrabalhos;então, nada nos emociona, tudo é muito pedra, como diz Ruffato, somos todos muito cavalos. Para os jovens, poetas são catadores de coisas mortas, são pregoeiros do caos... A cidade vencida cai aos nossos pés; as moças fatigadas a nós se entregam doendo de amores; soldados nos afrontam em renhidas lutas... Quando jovens resistimos em nossas idéias de tornar tudo inútil: tudo extraordinariamente inútil.
Atravessamos desertos, resignados, empunhando bandeiras, embriagados, apaixonados por nossas célebres convicções. Após vencermos os nossos melhores dias, rasgamos os panos de fundo e as bandeiras do futuro, realçamos, alçamos e derrubamos mitos eleitos entre paixões e sarcasmos; ninguém nos faz calar, tampouco nos faz render aos desanimados; anunciamos conspiradores, incendiamos circos e ateamos fogo aos rabos dos palhaços. Ao vir o amadurecimento, os medos levam-nos a nos chocar com o que antes sublevamos. Os primeiros sinais de um novo tempo são os filhos;depois deles, tudo que era novo passa a ser antigo e, assim, descobrimos valores impossíveis na lira dos vinte anos. Já não agimos pelos instintos, eis a claridade roubada. Os caminhos tornam-se vesgos, não solitários, ainda que as intenções sejam dispersas. Ao nos tornarmos homens, combatemos entre homens e máquinas objetivando o grande tormento, que é a riqueza, uma ilusão feita de luas e de vento.
O tempo é impávido diante da gramática; é imperativo, impessoal e substantivo quando deveria ser verbo. Como ele ruge diante dos homens, a despeito de tantos cuidados... Urge sob suas rugas, desequilibra-lhes os dentes, subtrai-lhes os cabelos e, como escolho expulso por um mar revolto, despeja-lhes a aceitação a tudo, à ponderação desequilibrada e ao calmo pensar diante dos torvelinhos.Leva-os a regiões inabitáveis, para presentear-lhes com desagradáveis novidades. Terrores insuflam-lhes, diante do medo e os levam a reconhecer em si todas as transformações.
Reflito: “Valeu andar até aqui e descobrir a ilusão de ser minha a última palavra?” “Valeu à pena virar as costas aos movimentos presumindo-me sabedor do que neles estava contido?” Amadurecer resolve a questão, ao mostrar-nos quão enganados estávamos com as nossas insustentáveis leituras do novíssimo mundo, todavia nos leva a conviver com temas afáveis a despeito da desordem geral.
Daqui até a próxima fronteira, senhor do tempo, se quiseres caminhar em paz, baixe o teor de sal dos teus versos, e não se imagine poetizando com açúcar.Suspeite das presenças de antepassados lhes rondando: elas são reais.Longe andarão tuas ironias, por isso não te afastes muito dos panos quentes de tuas reconciliações. Tão perto, quase palpável, a solidão te sonda, mas recomeçar, remoçar, voltar no tempo é a mais cruel das agonias.Bom seria saltar de sua órbita a criança pura que um dia fostes e guardastes na sua mais crua emoção.
Lute pelas tuas zonas de desejo pague impostos, multas e as altas taxas cobradaspois este é o preço da tua mais cruel inversão. Com a mesma constância que os teus olhos lacrimejam a tua pupila trabalha qual fonte perene e embaraça-te nas letras miúdas de sua história as tuas memórias tão solenes guardam verdadeiras jóias de incertezas para desfrutá-las no presente, então aquelas palavras ou aquelas imagens que não mais te ocorrem estão guardadas, onde? Quando?Indiferente... São pedaços rompidos em ti, confusões do crepúsculo, riqueza sem préstimo. Não te atormentes. Há em ti a ordem e uma luz, além de uma brilhante alegria planando em teu coração solidário - um contraponto ao furor dos vinte anos, a velha renúncia àquilo que elegestes... mas sinta a penetração no lenho dócil um mergulho na harmonia sem esforço e sem trabalho um achado sem dor esquecido no seu cofre luxuoso, cujo valor vais precisar quando estiveres nos lugares mais importantes do universo. Para clamar aos eufemismos, chamamos a isto experiência. Não digas jamais que tocas num alaúde. Importa, sim, o nome e o instrumento; mas, muito mais importa saber que este é um presente que não recebestes ao acaso, pelo contrário, é um direito que custou-lhes o sal, as rugas e os cabelos.
Carlos Kahê
MAIAKÓVSKI
EU SOU POETA: É JUSTAMENTE POR ISSO QUE SOU INTERESSANTE.

Se A Ciência da Palavra teve um artista convencido da importância do seu ofício, este foi Vladimir Maiakovski. O poeta russo teve urgência em demonstrar a importância da sua poesia no contexto da revolução por ele vivenciada, declamando-as em espaços públicos, muitas vezes seguidos de debates que o inspiraram a escrever versos como estes: “Grita-se ao poeta: “Queria te ver numa fábrica” O quê? Versos? Pura bobagem! Para trabalhar não tens coragem!” (retruca o poeta) Talvez ninguém como nós ponha tanto coração no trabalho. O poeta é uma fábrica. E se chaminés nos faltam talvez seja preciso ainda mais coragem. Sei. (interlocutor) Frases vazias não agradam. Quando serrais a madeira é para fazer lenha. E nós (poetas) que somos, senão entalhadores a esculpir a tora da cabeça humana? Certamente que a pesca é coisa respeitável. Atira-se a rede e quem sabe? Pega-se um estrujão! Mas o trabalho do poeta é muito mais difícil. Pescamos gente viva e não peixes. (interlocutor) Penoso é trabalhar nos altos-fornos onde se tempera o ferro em brasa. (e o poeta) Mas pode alguém acusar-nos de ociosos? Nós polimos as almas com a lixa do verso. (Interlocutor) Quem vale mais: o poeta ou o técnico que produz comodidades? Ambos (completa o poeta).
Nos últimos cinco anos de vida e de produção artística, Maiakovski foi um soldado que viajou pelo país, intervindo na imprensa, falando aos operários e camponeses, transformando em ação o trabalho do artista, o que deixa evidente sua concepção de arte como instrumento de intervenção. Maiakovski impregnou seus versos de vida turbulenta, que então vivia; e a plenos pulmões revestiu sua poesia de um poder bélico: “Poemas-canhões, rígida corte apontando maiúsculas abertas. Ei-la a cavalaria do sarcasmo, minha arma favorita para a luta. Rimas em riste, sofreando o entusiasmo, eriça suas lanças agudas (...) Eu vos dôo, proletários do planeta, cada folha até a minha última letra”. Ao suicidar-se, em 1930, aos 37 anos, o poeta do proletariado já se tornara grande, importante, conhecido em todo o mundo soviético. “A todas vocês, que eu amei e que amo, ícones guardados num coração-caverna, como quem num banquete ergui a taça e celebrei repleto de versos levanto meu crânio. Penso, mais de uma vez: seria melhor talvez pôr-me o ponto final de um balaço. Em todo caso eu hoje vou dar meu concerto de adeus. Memória! Convoca aos salões do cérebro um renque inumerável de amadas. Verte o riso de pupila em pupila, veste a noite de núpcias passadas. De corpo a corpo, verta a alegria: esta noite ficará na História. Hoje executarei meus versos na flauta de minhas próprias vértebras”.
Morre o poeta! Não morrem os seus versos! Seus versos jamais foram tratados à maneira dos soldados anônimos despojados nas lufadas do assalto. Seus versos, no entanto, com ele partilharam a glória, em comum monumento, mas não lhes deram rublos, nem mobílias, nem madeiras caras. Ficamos com as suas sementes, já que havia melancia para todos os dentes, como ele bem o declamara. A grande comoção havida em Moscou, pela sua morte contrapôs ao sentimento que nele impregnava de poeta incompreendido. Justo ele que carecia de olhos diante de suas palavras; olhos pra os quais os seus poemas se dirigiam; cuja importância mais premente em sua comunicação centrava-se na massa, no palco, na voz e no discurso direto. Nas linhas de um poeta se equilibra a morte, digo eu, Kahê, público de Maiakovski, que sou; pois nada é mais morte para um poeta do que o desacreditar em suas ideologias.
Quem ama o poeta russo sabe que ele não morreu e acredita na ressurreição de seus versos: “Um dia, quem sabe, ela, que também gostava de bichos apareça numa alameda do zôo, sorridente, tal como agora está no retrato sobre a mesa. Ela é tão bela, que, por certo, hão de ressuscitá-la. Vosso Trigésimo Século ultrapassará o exame de mil nadas que dilaceravam o coração. Então, de todo amor não terminado seremos pagos em inumeráveis noites de estrelas. Ressuscita-me, nem que seja só porque te esperava como um poeta, repelindo o absurdo quotidiano! Ressuscita-me, nem que seja só por isso! Ressuscita-me! Quero viver até o fim o que me cabe! Para que o amor não seja mais escravo de casamentos, concupiscência, salários. Para que, maldizendo os leitos, saltando dos coxins o amor se vá pelo universo inteiro. Para que o dia, que o sofrimento degrada, não vos seja chorado, mendigado. E que, ao primeiro apelo: - Camaradas!Atenta se volte a terra inteira. Para viver livre dos nichos das casas. Para que doravante a família seja o pai, pelo menos o Universo, a mãe, pelo menos a Terra”.
Temo que Maiakovski tenha-se suicidado em virtude do seu desencanto com o Regime. Um artista da palavra flerta com as frestas para espargir suas farpas. “A República Democrática é por aí que se revela. Promete tudo dividir em partes iguais: para uns a rosca, e para os outros o buraco dela”.
P.S. : Vou chamar Literatura de A Ciência da Palavra, enquanto ouvir os incautos chamarem bibliografias, textos alhures, de Literatura.
CarlosKahê