domingo, 13 de janeiro de 2008

EDGAR ALLAN POE

O GENIO EM DESEQUILIBRIO
Aspecto: O Psicológico.

É quase impossível refletir sobre a obra de Edgar Allan Poe sem cair na tentação de traçar paralelos entre o seu fazer literário e a sua tão decantada personalidade, uma vez que sabemos serem as nossas atitudes resultante daquilo que somos. Em literatura, mais do em qualquer outra arte, as possibilidades de nos revelarmos ou de multifacetarmos, de aglutinarmos ou nos colocarmos justapostos, em relação às performances das personagens e temas que criamos, se manifesta com mais rigor e obstinação. Em Poe não poderia ser diferente.
A obra de Poe, enquanto complexa é, surpreendente, quer pela forte relação que ela mantém com o que conhecemos da sua personalidade ou pelo aspecto extraordinário explícito na razão direta do seu caráter: dizem ter coexistido, em Poe, duas pessoas: uma gentil, afetuosa, devotada, e outra arrogante, rebelde, egoísta e de difícil relação.
Segundo a crítica especializada, essas alternâncias de caráter estão claramente manifestas em sua obra: são elementos importantes que dão profundidade e intensidade; em alguns momentos, deixam emergir todo o seu esplendor de vida; noutros, o que ressalta é o seu alterego melancólico, no tratar com imagens e palavras. Transcrevemos, a seguir, alguns trechos do conto “The Black Cat”, em cujas passagens poderemos nos acercar do seu lado gentil: “Desde a infância observaram minha docilidade e a humanidade do meu caráter. A ternura do meu coração era de fato tão conspícua que me tornara alvo dos gracejos dos meus companheiros” (...) “Passava a maior parte do tempo com eles (os animais) e os meus momentos mais felizes transcorriam quando os alimentava e os acariciava”. (...) Casei-me cedo e tive a felicidade de encontrar em minha esposa uma disposição que não era diferente da minha.“
Não obstante a doçura e suas colocações, a violência, o funesto, a fatalidade e o sobrenatural, bem como a vida e a morte, são tratados com o mesmo tom, dentro da sua estrutura psicológica, muitas vezes entrelaçando-se, sem que os elementos reais e imaginários interfiram na sua acuidade e em seu raciocínio. O tom com que Edgar Allan Poe convida o leitor a penetrar em seu mundo imaginário é feito sem violência; é como colocar os pés num turbilhão, devido à solenidade surpreendente, embora o espírito se mantenha em estado pleno de alerta.
Quando, porém, solicita o seu lado funesto, suprime os sentimentos acessórios e, lentamente, introduz a história com outra forma de olhar o mundo, e sem que se perceba, encaminha o leitor a um trabalho de profundo desvio do intelecto, sobre algo fora da ordem, que ele tenciona defender como tese de boa safra: “A fúria de um demônio possuiu-me instantaneamente... Minha alma original parecia ter fugido imediatamente do meu corpo, e uma malevolência, mais do que satânica, assumiu o controle de cada fibra do meu corpo... Tirei o canivete do bolso do meu colete, abri a lâmina, agarrei a pobre besta pela garganta e deliberadamente arranquei a órbita do seu olho”. (The Black Cat)
Edgar Allan Poe quebrou os parâmetros literários, ao introduzir as exceções humanas e naturais. Em Poe, os ardores dos relacionamentos rumorosos abriram lugar às dúvidas e ao absurdo, insinuando-se diante dos equilíbrios; sobretudo, dominou o calmo pensar com uma lógica espantosa para um fundamento imaginário. Em sua obra, o irracional domina o racional, as vontades se estabelecem dentro de controles, e o céptico torna-se rarefeito diante do histérico: e a dor e o riso se aliam para se justificarem. “Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. Vós, que tão bem conheceis a natureza de meu caráter não haveis de supor, no entanto, que eu tenha proferido qualquer ameaça: (...) Introduzi uma vela pelo orifício que restava e deixei-a cair dentro do nicho. Senti chegar até mim, como resposta, apenas um tilintar de guizos. Senti o coração opresso, sem dúvida devido à umidade das catacumbas. Apressei-me para terminar o meu trabalho. Com esforço, coloquei em seu lugar a última pedra ¾ e cobri-a com uma argamassa. De encontro à nova parede, tornei a erguer a antiga muralha de ossos. Durante meio século, mortal algum perturbou. Que descanse em paz! (The Cask of Amontillado).

A força propulsora de Poe é a palavra. Nela, o tempo e o ambiente se definham diante das narrativas febris com que tenta realçar os seus enredos. Lemos em algum lugar, algo sobre ele esquivar-se de tratar das paixões, haja vista as suas personagens serem, normalmente, homens de faculdades agudas, frios, cuja vontade ardente e paciente era lançar desafios às dificuldades; os olhares dos homens, criados por Poe, estiveram sempre ajustados com a rigidez de uma espada sobre objetos, que cresceram à medida que ele os contemplava. Ou seja, Poe é ator e mártir de sua própria obra.
Quanto às mulheres, apesar de trazerem certa luminosidade, apresentam-se sombrias, doentes, acometidas de estranhos males e deles vão morrer. Se não reportam ao seu mais íntimo pensar, retratam as que marcaram a vida do escritor, uma vez que insurgem contraindo aspirações estranhas, melancolias incuráveis que não desfazem o forte conceito de quem o observa, mais profundamente, de atrelá-las à sua personalidade: “Erguendo um machado esquecido em minha cólera do medo infantil que até então me impedira de levantar um dedo contra o gato, dirigi um golpe ao animal que, sem a menor dúvida, teria sido fatal se tivesse acertado onde queria. Porém a machadada foi impedida pela mão de minha esposa a segurar-me o braço de seu aperto e, com um único golpe, enterrei o machado na cabeça dela. Ela caiu morta no mesmo lugar, sem soltar um gemido. Tendo cometido esse assassinato pavoroso, imediatamente, sem remorsos e de maneira mais deliberada possível, voltei-me para a tarefa de esconder o corpo”. (The Black Cat)
Portanto, como afirmamos antes, a obra de Poe é complexa e surpreendente pela forte relação que mantém com o que conhecemos das suas estranhas unidades. Para um psicólogo, que estuda uma faculdade variável, móvel, diversa, como a imaginação, vai encontrar nessas suas ambigüidades o aspecto extraordinário que está mitificado em sua história de homem que, embora reconhecidamente um gênio de imaginação erradia e ambiciosa, não conseguiu expressar-se de forma a omitir essa sua dualidade doentia.

Carlos Kahê

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