quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

O HOMEM HONESTO

Escrevi para um livro futuro, A ROSA DO TEMPO, o conto “Pequenos Auxílios vindos de um ladrão” onde narro a história de um ladrão que entra numa casa, mas, ao invés de roubá-la, prefere deitar-se ao lado da dona-da-casa e dormir; antes, ele faz reclamações de sua organização que o escala para os plantões das madrugadas frias, sem pagar-lhe horas-extras, insalubridade, adicionais noturnos, etc., etc.... Italo Calvino, escritor italiano, vai mais além: descreve um país onde todos eram ladrões. À noite, cada habitante saía com uma lanterna e uma gazua – uma espécie de ferro torto com que se pode abrir fechaduras – íam roubar as casas. De madrugadas voltavam esses homens carregados e encontravam suas casas arrombadas. Desta forma, todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, o outro roubava um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último que roubava o primeiro.
A atividade produtiva naquele país era praticada com trapaça; tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinqüentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem tropeços e não havia nem ricos nem pobres.
Certo dia, não se sabe como, apareceu naquele país um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco, lanterna e gazua, ficava aquele homem em casa fumando e lendo romances. Hábito mais tolo! Quando os ladrões chegavam e viam a luz acesa, não subiam. Ato falho. Essa situação durou algum tempo até que a voz da razão chamou-o às falas: “Se queres viver sem fazer nada... Procure outra paragem. O seu mau procedimento está impedindo que os outros prosperem!” Ora, cada noite que ele passasse em casa era uma família que não comia no dia seguinte.
Intimidado, o homem honesto não teve alternativa: foi obrigado a sair de casa, ao cair da noite, como todos os trabalhadores, e só voltar pela madrugada. Mas ele fraudava as leis e não roubava. Era honesto, por isso não havia nada com que se ocupar. Andava até a ponte e ficava vendo a água passar embaixo. Voltava para sua casa e a encontrava roubada. Em menos de uma semana o homem honesto ficou sem um tostão, sem o que comer e com a casa vazia. Qualquer reclamação que fizesse jogavam-lhe na cara a sua inaptidão para o trabalho. Esse seu comportamento contribuiu para que lhe faltasse o pão, e causou na comunidade o grande desequilíbrio. Ele deixava que lhe roubassem tudo, mas não roubava ninguém; assim, sempre ia haver alguém que ao voltar pra casa ia encontrá-la intacta, e era justamente a casa que o homem honesto devia ter roubado.
Naturalmente, os que não eram roubados acabaram ficando mais ricos do que os outros; assim, passaram a não querer mais roubar ninguém; e ocorreu também de os outros irem roubar a casa do homem honesto e sempre encontrá-la vazia, sem víveres. O que ocorria? Estes iam ficando pobres. O homem honesto, irresponsavelmente, criava o caos social. Enquanto isso, os que tinham se tornado ricos pegaram o costume de, também, irem à noite até a ponte, somente para ver a água que passava embaixo, e isso só aumentava a confusão. Mais gente ficando rica e outras tantas ficando pobre.
Ora, chegou o tempo em que os ricos entenderam que o habito de irem à noite até a ponte os levaria a ficar pobres. E pensaram: “A alternativa é pagarmos aos pobres para roubarem pra nós”. Fizeram-se os contatos, estabeleceram-se os mensalões, as percentagens e as naturais propinas: os ricos, obviamente, continuavam a ser ladrões, mas de uma forma mais sofisticada, ou seja, trapaceando nos acertos, enganando, tirando proveito da esperteza, adequando as leis às suas causas... Como acontece nas sociedades mais conhecidas, os ricos tornavam-se cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Havia ricos tão ricos que não precisavam mais roubar e só o faziam para continuarem a ser éticos com os costumes do lugar e não atrapalhar o equilíbrio do país, como ocorrera com o “trouxa” honesto. Se parassem de roubar, obviamente, eles iam ficar pobres, e os pobres, fatalmente, iam roubá-los. O que fizeram: pagaram aos mais pobres dos pobres para defenderem os seus bens contra os outros pobres, e assim instituíram a polícia; e como visionários, constituíram as prisões.
É bom que não se esqueçam que todo esse transtorno fora causado pelo homem honesto. Dessa forma, poucos anos após aparecimento daquele ser estranho, não se falava mais em roubar ou ser roubado; falava-se em ricos e pobres. A base social da pirâmide reforçava-se a cada dia com o aporte de pobres e mais pobres. Aquele sujeito honesto foi deportado.
Carlos Kahê

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