sábado, 12 de janeiro de 2008

O DESPERTAR DA INTELECTUALIDADE


DESPERTAR DA INTELECTUALIDADE: ENGAJAMENTO E CONTRACULTURA
No final do século XIX, intelectuais como Machado de Assis, José de Alencar, entre outros, engendraram esforços no sentido de se criar um programa voltado à construção de uma Identidade Nacional, a almejada “cor local”, que seria a formação de uma cultura própria desvinculada de Portugal e de outros centros inspiradores.
Anos mais tarde, A Semana de Arte Moderna, de 1922, retomou a concepção organizacional do pensamento, no Brasil. Se nada de novo apresentou durante o evento realizado no teatro Municipal de São Paulo, levou a intelectualidade brasileira à reflexão quanto à sua própria produção e os seus compromissos com o pensamento social. Os cabeças do movimento paulista, Mario, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia, utilizaram como mote de suas reivindicações rechaçar qualquer influência externa. Suas inquietações denotavam a perplexidade diante do marasmo econômico que se operava em nossa sociedade, essencialmente agrícola, enquanto que as civilizações que lhe serviam de modelo consolidavam-se como sociedades industriais.
No ensaio, Debates intelectuais dos anos 1950, 1960 e 1970: engajamento e contracultura, escrito por Mariza Veloso, ela faz uma excelente abordagem sobre este despertar, a partir do período pós guerra, época em que a modernização brasileira acontece. A produção industrial, embora incipiente, dá os seus primeiros passos; valores estéticos de vanguardas se estabelecem, como se estabelecem os parâmetros culturais que vão gerar os movimentos concretistas, construtivistas e a nova linguagem cinematográfica proposta pelo Cinema Novo: sua visão aguda sobre as contradições da realidade brasileira, embora de forma crua, sem apontar possíveis idealizações tanto do Brasil, quanto da América Latina. Na literatura, há que assinalar Guimarães Rosa e Clarice Lispector e seus feitos criativos no plano da linguagem; a visão estética do mundo e posturas diante daquilo que consideravam realmente moderno.
Mariza Veloso enfatiza o pensamento social de Caio Prado Junior, em cuja obra, Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, o intelectual paulista lança olhares sobre a historiografia tradicional: monocultura, latifúndio e escravidão, utilizando a perspectiva marxista para explicar a inserção subalterna do Brasil no sistema capitalista, o que leva Celso Furtado a inserir a economia no contexto sócio-histórico e na produção e reprodução das relações sociais.
Nas décadas de 1940 e 1950, as ciências sociais consolidam-se nos mais adiantados centros acadêmicos, a exemplo da USP, que adota critérios no sentido de dar autonomia à pesquisa acadêmica e à universidade diante de outras instâncias de poder. Outro centro importante, o ISEB, do Rio de Janeiro, reuniu grupos de cientistas sociais com a proposta de elaborar um modelo de desenvolvimento para a sociedade brasileira pensar na possibilidade de se criar uma nova Capital Federal. A nova capital seria fundada no cerne do seu imenso território, com fins de aproximar o Poder Econômico do seu povo. As reuniões do ISEB, também, tinham em pauta, formular uma nova modalidade de nacionalismo, baseado no planejamento racional e a necessidade de explicitar o sentimento das massas populares: um tipo de ideal desenvolvimentista, entendido como possibilidade de inserção autônoma do país no sistema capitalista internacional.
Na década de 1940 foi criada a Campanha Nacional do Folclore, inspirada pelo Ministério das Relações Exteriores, que visava a recolher e documentar as manifestações da cultura tradicional. Criou-se a Carta Folclórica que orientava os intelectuais em seus congressos, pesquisas e atividades. O objetivo era valorizar a autenticidade da manifestação folclórica, pois que se acreditava estar ali a tão propalada “Identidade Nacional”, que ainda movia a intelectualidade. No entanto, a partir dos anos 60, encontrando nas manifestações populares uma dinâmica cultural aguçada capaz de propiciar uma nova comunicação entre as massas, os intelectuais não mais reconhecem nas tradições do povo, o folclore; doravante tais manifestações passam a ser chamadas de“cultura popular”.
A crise mundial chegara ao seu ápice, motivada pelo assassinato do presidente Kennedy, pela ocupação União Soviética nos países da Cortina de Ferro, a Guerra do Vietnã... A grande revolução de costumes provocava uma crise de valores expressa nos movimentos da juventude, em nível mundial. Evidentemente, em cada país esses movimentos assumiam um caráter específico, evidenciando, assim, contradições próprias de acordo com a realidade de cada um.
No Brasil, com o advento do golpe militar, instalaram-se controles rígidos nas produções culturais, o que ocasionou rupturas generalizadas e transformações profundas no campo intelectual. Ao ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e à UNE (União Nacional dos Estudantes) vincularam-se os Centros Populares de Cultura, criados com a finalidade de desenvolver a consciência das massas por meio das artes. Esses “centros” acenavam para as camadas mais populares com uma produção cultural altamente engajada: sua função primeira seria emancipar politicamente o povo e aproximá-lo dos artistas de massas. Considerando tudo aquilo uma metáfora, os Militares vislumbrou naquele evento uma forma estratégica encontrada pelos intelectuais de deslocar as massas para posições mais revolucionárias, mais à esquerda do imaginável. Foi o último estertor utópico e libertário. As vozes se calariam, definitivamente, na década seguinte.
Poucos órgãos, revistas e jornais criaram resistência ao novo regime. A indústria cultural se consolida, misturada à cultura popular internacional, absorvida sistematicamente. A televisão é alçada ao topo das comunicações de massas, toma a direção dos novos costumes, todavia, altamente controlada pela censura, limita-se ao que era idealizado pelo sistema: sempre com a visão otimista do país, a partir de uma cartilha oficial receitada.
Até a promulgação do AI-5, em 1968, a cultura crítica e irreverente ainda tentou manter em alta a hegemonia das esquerdas: demonstravam audácia e criatividade em resposta ao horror que já se apregoava nas ruas e nos pátios das universidades. Inúmeros são os exemplos de atrocidades que agraciaram verdadeiros líderes com o exílio.
De acordo com Mariza Veloso, ao se preconizar a necessidade de uma arte e de uma cultura engajadas e de denúncia social, há que se ressaltar as idéias inspiradas sob a égide do Tropicalismo, pois que ali estão formuladas as narrativas mais expressivas e as imagens mais contundentes.
O poeta francês, Mallarmé, dizia que os poetas são aqueles que purificam as palavras da tribo, todavia o que fazer com esses poetas quando a repressão restringe-os ao vazio? Os anos 70, para a arte-engajada, representam esse vazio: sem ideologias unificadoras e sem manifestos. O resultado é uma produção cultural desigual e dispersa; do novo passa-se ao marginal e deste ao inexprimível popular, ou seja, a cultura amparada pelo capital oficial, denominada popular se contrapõe à cultura marginal e esta se insere no contexto como contracultura: a poesia passada de mão em mão e a música de protesto são as vozes que expressam os dilemas vividos pela sociedade. Surge o fenômeno “pop” uma categoria que permite o livre trânsito entre as linguagens artísticas eruditas e populares.
Nas artes a diversidade traz um festival de estilos efêmeros e variáveis: vale ressaltar a “arte conceitual” em cuja produção o objetivo do artista era deslocar a atenção do objeto criado. Mudando essa postura, a expectativa recairia sobre o público; valia a análise sobre sua reação, choque e estranheza, em relação ao objeto. A proposta, além de colocar o público como experiência estética, visava a deslocar seus hábitos perceptivos. Se a diversidade e a fragmentação das tendências estéticas e científicas dificultavam a visão do conjunto e não os levava a enfatizar narrativas ou imagens que pudessem ser significativas, a arte conceitual teve o mérito de apontar para mutações significativas e instaurar uma nova lógica nas condições da produção cultural.
No seio de uma sociedade formada por um expressivo contingente da classe média, o acesso a itens de consumo postos em circulação, sobretudo de consumo cultural, encarregou-se de delimitar o status, discriminar as zonas de influências e regular as trocas simbólicas, o que inspirou, em plenos anos 80, a intensificação das experiências estéticas originais, criadas com o propósito de demonstrar o poder da cultura e da arte na renovação das práticas sociais contemporâneas. Assim, surgiram os movimentos jovens, o movimento negro, o feminista e o ambientalista. Estas transformações apenas tomam o curso da eterna globalização, pois que ainda resguarda os valores iluministas, padrões universalistas de organização política e cultural, quais sejam, as generalizações de ideais, como liberdade, igualdade, razão e progresso, molas propulsoras das narrativas fundadoras da modernidade.
Essas reflexões são importantes, porque revigoram a certeza de que somos capazes de gerar procedimentos e estratégias de superações; de buscarmos em nosso passado rituais de introjeção que nos tornem capazes de recriar novas expressões culturais. Vejamos a arte religiosa, barroca, a literatura de Machado, a música de Villa Lobos, a pintura mural de Portinari e o cinema de Glauber: exemplos significativos da capacidade de apropriação seletiva das diversas matrizes culturais, devolvidas sob forma de produtos originais. Isto significa que manifestações de vigor universais da cultura brasileira, antes de nos possibilitar a absorção e filtragem de seus ricos valores, são acervos de tradições estéticas singulares.
Para concluir, Mariza Veloso defende que é mais adequado considerar que idéias, práticas e imagens suscitem variadas relações entre si e não necessariamente imponham a predominância de um sistema de valores sobre outro. Vale focar os diferentes universos culturais a partir das noções de confluências e interlocuções que suas marcas se interpõem e se auto-influenciam: este percurso sugere uma reavaliação de cada um dos momentos, para que vejamos o passado como lições e legados para a consecução de novas utopias.
Carlos Kahê
























Um comentário:

Carlos Kahë disse...

O despertar da intelectualidade é um artigo riquissimo e atual. Leva-nos à refletir a nossa saída das trevas e encontrar as "luzes" à luz das leituras.

CARLOS FONTENELLE FERNANDES