Em fevereiro penso nos amigos que se espraiam sob a égide de aquário. Penso em mim e penso no Drummond. “O último dia do tempo não é o último dia de tudo. O dia do nosso aniversário não é o único dia do nosso tempo".Recebo com simplicidade este presente do acaso, buscando ser merecedor de mais um ano, mas aviso: eu não penso em esgotar a borra dos séculos...Ainda uma vez, estou vivo e de copo na mão esperando mais um amanhecer na minha existência.
Ao caminharmos na vida, as lições da infância se plenificam vertidas em palavras mais acuradas. Os desejos débeis não nos fazem falta, e quando nos completam são sempre de uma forma melancólica. Quando jovens, comportamo-nos à maneira dos cavalos livres nos grandes prados do mundo, alimentados pela seiva dos anjos. Varamos noites, mergulhamos em insípidas águas, vivemos absorvidos pela nossa epopéia e desejos carnais;bebemos de tudo, desfazemos de tudo, criamos e, das nossas criações, descuidamos. Uma noite dormida na juventude é um alicerce.Ofertas são excluídas, assim, como as possibilidades. Somos pássaros roucos, mudos, sem canto; pousamos a esmo sobre os nossos retrabalhos;então, nada nos emociona, tudo é muito pedra, como diz Ruffato, somos todos muito cavalos. Para os jovens, poetas são catadores de coisas mortas, são pregoeiros do caos... A cidade vencida cai aos nossos pés; as moças fatigadas a nós se entregam doendo de amores; soldados nos afrontam em renhidas lutas... Quando jovens resistimos em nossas idéias de tornar tudo inútil: tudo extraordinariamente inútil.
Atravessamos desertos, resignados, empunhando bandeiras, embriagados, apaixonados por nossas célebres convicções. Após vencermos os nossos melhores dias, rasgamos os panos de fundo e as bandeiras do futuro, realçamos, alçamos e derrubamos mitos eleitos entre paixões e sarcasmos; ninguém nos faz calar, tampouco nos faz render aos desanimados; anunciamos conspiradores, incendiamos circos e ateamos fogo aos rabos dos palhaços. Ao vir o amadurecimento, os medos levam-nos a nos chocar com o que antes sublevamos. Os primeiros sinais de um novo tempo são os filhos;depois deles, tudo que era novo passa a ser antigo e, assim, descobrimos valores impossíveis na lira dos vinte anos. Já não agimos pelos instintos, eis a claridade roubada. Os caminhos tornam-se vesgos, não solitários, ainda que as intenções sejam dispersas. Ao nos tornarmos homens, combatemos entre homens e máquinas objetivando o grande tormento, que é a riqueza, uma ilusão feita de luas e de vento.
O tempo é impávido diante da gramática; é imperativo, impessoal e substantivo quando deveria ser verbo. Como ele ruge diante dos homens, a despeito de tantos cuidados... Urge sob suas rugas, desequilibra-lhes os dentes, subtrai-lhes os cabelos e, como escolho expulso por um mar revolto, despeja-lhes a aceitação a tudo, à ponderação desequilibrada e ao calmo pensar diante dos torvelinhos.Leva-os a regiões inabitáveis, para presentear-lhes com desagradáveis novidades. Terrores insuflam-lhes, diante do medo e os levam a reconhecer em si todas as transformações.
Reflito: “Valeu andar até aqui e descobrir a ilusão de ser minha a última palavra?” “Valeu à pena virar as costas aos movimentos presumindo-me sabedor do que neles estava contido?” Amadurecer resolve a questão, ao mostrar-nos quão enganados estávamos com as nossas insustentáveis leituras do novíssimo mundo, todavia nos leva a conviver com temas afáveis a despeito da desordem geral.
Daqui até a próxima fronteira, senhor do tempo, se quiseres caminhar em paz, baixe o teor de sal dos teus versos, e não se imagine poetizando com açúcar.Suspeite das presenças de antepassados lhes rondando: elas são reais.Longe andarão tuas ironias, por isso não te afastes muito dos panos quentes de tuas reconciliações. Tão perto, quase palpável, a solidão te sonda, mas recomeçar, remoçar, voltar no tempo é a mais cruel das agonias.Bom seria saltar de sua órbita a criança pura que um dia fostes e guardastes na sua mais crua emoção.
Lute pelas tuas zonas de desejo pague impostos, multas e as altas taxas cobradaspois este é o preço da tua mais cruel inversão. Com a mesma constância que os teus olhos lacrimejam a tua pupila trabalha qual fonte perene e embaraça-te nas letras miúdas de sua história as tuas memórias tão solenes guardam verdadeiras jóias de incertezas para desfrutá-las no presente, então aquelas palavras ou aquelas imagens que não mais te ocorrem estão guardadas, onde? Quando?Indiferente... São pedaços rompidos em ti, confusões do crepúsculo, riqueza sem préstimo. Não te atormentes. Há em ti a ordem e uma luz, além de uma brilhante alegria planando em teu coração solidário - um contraponto ao furor dos vinte anos, a velha renúncia àquilo que elegestes... mas sinta a penetração no lenho dócil um mergulho na harmonia sem esforço e sem trabalho um achado sem dor esquecido no seu cofre luxuoso, cujo valor vais precisar quando estiveres nos lugares mais importantes do universo. Para clamar aos eufemismos, chamamos a isto experiência. Não digas jamais que tocas num alaúde. Importa, sim, o nome e o instrumento; mas, muito mais importa saber que este é um presente que não recebestes ao acaso, pelo contrário, é um direito que custou-lhes o sal, as rugas e os cabelos.
Carlos Kahê
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