segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

SOSÍGENES COSTA

EM CORES, AROMAS, VINHOS, REQUINTES E VERSOS.
A tarde mal fecha a cintilante janela, chegam os aromas como uma grinalda a ornar a tua sombra. Queima de sândalo e incenso o poente... cai a noite. Que belo! Um doce aroma exala das veredas, enchendo de perfume o meu caminho, e um naipe de pavões lilases revoam sobre o castelo. Meus lírios, meu tule cor-de-rosa, meu mundo irreal nos buquês recendem aos teus carinhos... As cores estão nas rosas e nos vôos lilases sobre o crepúsculo que termina. O céu agora se reveste da lua nova e nos arrulhos dos pavões vestidos com a seda pura da China.
Diante do sentimento telúrico dos baianos, Sosígenes foi único e verdadeiro em estranheza e refinamento. Justamente na estranheza do seu refinamento é que ele nos impregna do luxo clássico com seus pavões, seus lilases, mirra, azul e brônzeo canelado, ao plasmar toda a sua inventividade, numa ordem de importantes movimentos.
É o grande simbolista do modernismo que jamais se apartou do parnaso. Belmontino de nascimento, o poeta embebeu-se de Alberto, Correia e Bilac, para inserir-se leve, elegante, extremamente revelador e, ao mesmo tempo, arrojado, ao crivar um verbo próprio e inconfundível ao seu cancioneiro.
“Teu beijo, como um pássaro, me trouxe o mais azul de todos os delírios. No vinho me embriago e esqueço a tua face pra esquecer os martírios. Por tua causa o meu jardim fechou-se às mulheres que vinham buscar lírios, quando o poente cor-de-rosa e doce punha pavões nos capitéis assírios”.
Sosígenes cultivava o preciosismo e a beleza da linguagem para transformar imagens em êxtase de cores e movimentos. Pouco conhecido, mas, por esses poucos, reconhecido pela inventividade capaz de manter acesa a sua arte, de manter-se aceso e iluminado pelos candelabros raros e pelas raras belezas do Oriente que lhe marcaram a trilha, traço e a intuição, no jeito inigualável de fiar a poética em redondilhas.
Essas características estão presentes em seu livro, Poesia completa, o único trabalho literário seu publicado em vida. Poesia completa reúne em um só volume toda a sua produção poética. Obra de extremo apuro, que descortina o lapidador, um homem que entendia ser a poesia um sinal da sua percepção de mundo real/imaginário e do mundo fantástico/imaginado. À primeira vista, esse lapidador mostra-se sem a medida clara da versificação, contudo, não é na versificação que o leitor deva buscar a vitalidade da sua maneira de ver o mundo, mas, sobretudo, no preciosismo com que experimentava palavras para construir o seu campo imagético. A sua vitalidade está também no rigor da sua composição permeada de simbologias, na musicalidade das suas construções e no sagrado sentimento do belo, do pulsar de suas viagens aos cantares bíblicos, e das insígnias salomônicas de suas paráfrases.
Imaginamos Sosígenes, sentado, olhando os barcos chegando a Belmonte, vindo das Arábias e das Antilhas; o imaginamos, poeta, espalhando, além dos marcos, açafrão, anis e bilhas; um homem especial, superior, que odiava os charcos, que passeava pelo cais ignorando as cochinilhas; que andou pelo palácio de Herodes, namorou Salomé, passou pelos arcos para chegar ao mar da China, e que de lá voltou sobrecarregado de seda e porcelana, de laca e lótus e de veludo vestido; uma imagem imortalizada, no andor do sol, pelos reis do aroma e que, para a glória humana, se tornou esclarecido.
Quem chega a contemplar o seu mar de palavras e imagens, se perde numa visão de sonhos, absorto com os seus pavões dourados ao abrir leques de pedrarias; quem chega para contemplar o seu mar de palavras e imagens, caminha sobre as águas, entre as naus azuis que, singrando o mar da china, sob estrelas nuas, vê dragões de ouro voando com as garças róseas sobre os crepúsculos lilases dos céus de suas ruas.
Quem chega ao mar de cisnes prateados, desliza sob as castanheiras nas ruas de chuva, para quando vir a noite apagar o sol atrás da Piedade, e acender o teu nome, Sosígenes, no lago encantado com a luz da lua.
Sosígenes deixou transparecer, através de lugares impressionantes e belos, traduzido por suas palavras, que a sua natureza não conhecera outra ordem no mundo senão a dos requintes palacianos e da nobreza oriental; daí a pureza elegante com que criou os seus versos e o seu itinerário poético povoado de mitos e símbolos da realeza.
Por onde passou, foi um rei asceta, de céus, de plantas e de água deslumbrado; um moço de fino trato, que em “Maio”, escreveu ao seu platônico amado nascido nas colinas, a quem acariciou as mãos de pomba cristalina; um ângelus cigano, cândido, de sorriso melódico e sincopado; irmão das doces bailarinas, Orfeu, camafeu, filho das rosas, seu único amado. “Dorme a loucura em ânfora de vinho e a ilusão está dentro deste poço. Castiga, sim, mas de um modo que não seja mesquinho. Só a loucura me faz fugir desse vinho e mirar no espelho os teus olhos de moço... Orfeu, camafeu, filhos das rosas de maio, nascido anjinho...”
Se fosse possível escolher entre todos os símbolos e imagens por ele celebrados, o que seria? O carro de chuva nos pôres-do-sol? Um rei misterioso, assírio, Herodes ou Zumbi? Um pavão triste que vagou por estranha sina? Um anjo que embriagou na tarde ao pé do belo monte? Talvez a natureza escolhesse aquele Orfeu misterioso, que viajou por ricos jardins de ilusão no horizonte, em cidades de cores, flores e aromas, de sépia, topázio e turmalina.
Sosígenes, as prostitutas continuam no poente olhando as rosas e adorando as aves! Continuam as naves chegando, orgulhosas, humilhando suas almas doridas, suaves, com suas chamas ardentes. Tais naves são nuvens no ocaso depurando o cristal feminino, cujos contornos são derramados aos nossos pés, nas lágrimas de um olho peregrino.
Tu, que fostes um dragão em mar de cravos e sereias, poeta a deitar mais alto o verso nobre e eterno... Poeta! Os teus sais da Grécia vêm do fundo mar ou vêm do inferno? E o teu dourado terno de lírios e pavões são capitéis brilhando na noite ou são dragões das luas cheias?
Sosígenes, acima de tudo foi poeta, desnudo do manto da tarde incendiado; cingido de aroma, arrebatou auroras e se deteve em ninhos de perfumes; se aninhou, pássaro sagrado, saciou-se com virgens e flores e vinhos e cores, símbolos, objetos, feito imagens e palavras com que trabalhou e tão bem soube utilizá-las, escravizá-las, torná-las pedrarias com as quais seria imortalizado.
Carlos Kahê

Um comentário:

Esechias disse...

Carlos Kahê,
Sinceramente, fica quase impossível escolher pérolas entre pérolas. É o que se nos parece quando nos deparamos com um texto seu. "As prostitutas continuam no poente olhando as rosas e adorando as aves".Para falar de um trabalho de um poeta lá vem um outro poeta de igual quilate. Num oceano de poesia que é seu texto, vez por outra a inserção de excertos da poesia de Sosígenes.Parafraseando Castro Alves "qual dos dois é o céu, qual o oceano?" Quem sabe?
Num final de domingo, véspera de feriado, degustar, com parcimônia e avidez - paradoxal - poesia desse nível é algo tão prazeroso... Não dá para tecer em palavras. Afinal, poesia é "inaprisionável", não cabe nos signos. Só nos resta sentir. Do, doravante, fã,
Esechias
esechiasalima@yahoo.com.br